Sem Terra deixa de ser categoria social para tornar-se nome próprio quando
identifica um grupo que decidiu ser sujeito para mudar de condição
social através da organização política, forjando daí
sua própria identidade, com ideologia e valores.
Há uma mistura profunda entre gente, terra e ideologia, na medida em
que a caminhada provoca o encontro do ser homem com o ser terra. São
dois corpos físicos materiais que possuem características e identidades
que agora irão resgatar reciprocamente a história das duas existências.
Embora sejam corpos físicos, é preciso entender que não
são apenas matéria. Tanto o homem quanto a terra possuem aspectos
que vão além das aparências, isto porque não podemos
considerar apenas as coisas visíveis e tocáveis como totalidade
das coisas materiais. Nelas e dentro delas, há coisas que podemos tocar
e coisas que não podemos tocar, mas existem.
Cada um sabe, com efeito, que na realidade coisas que podemos ver, tocar, medir,
são chamadas materiais. Por outro lado, há coisas que não
podemos ver, nem tocar, nem medir, mas que, nem por isso, deixam de existir,
como nossas idéias, nossos sentimentos, nossos desejos, nossas lembranças,
etc.; para exprimir que não são materiais diz-se que são
ideais. Dividimos, assim, tudo o que existe, em dois domínios: o material
e o ideal. Pode-se também dizer; de maneira dialética, que o real
apresenta um aspecto material e um aspecto ideal.(3)
Resta entender qual é a parte visível, que podemos tocar, e qual
é a parte invisível da terra que não podemos tocar, mas
que podemos sentir e que, por isso mesmo, existe. Assim também devemos
proceder com o ser humano.
A terra tem, em sua origem, a energia que se transforma em potencial de ser
mãe e gerar a vida de todas as espécies, sem se preocupar com
a convivência entre elas, mas oferecendo, com seu sopro, alimento para
todas, sem distinção. Se as espécies não compreendem
os ciclos da própria existência e se destroem, a culpa não
é da terra mas dos desequilíbrios das próprias espécies,
por não saberem conviver no mesmo espaço. As que conseguem locomover-se
buscam alimentos, retirando-se, andando por sobre a terra, à procura
de um espaço diferente. Para as espécies em deslocamento, poderá
haver variação de clima, solo e temperatura; para a terra, não.
Ela se estende como um imenso tapete colocado dentro da casa do universo, que
se compõe de diferentes repartições. Os seres vivos é
que se deslocam, vão da sala para o quarto ou para a varanda deste universo,
mas todos os cômodos fazem parte da mesma casa.
As plantas e todos os tipos de vida têm sua trajetória existencial.
Teriam sua história escrita se essa possibilidade estivesse no vocabulário
das espécies que convivem com a vida humana. Como não aprendemos
a falar a língua das plantas e das minhocas, e estas não usam
nossa caligrafia, pensamos que elas nada têm de importante a dizer sobre
sua existência. Por isso derrubamos as plantas, matamos as minhocas e
secamos a terra.
O ser humano, por sua vez, parece disputar, com os demais tipos de vida, lugar
para viver e se mover sobre a terra. Por isso, por onde passa, destrói
o que precisa e o que não precisa para viver naquele momento.
Nossa cultura ainda deve assimilar a linguagem das plantas, dos animais e das
águas, para poder dialogar em pé de igualdade com todas elas.
Talvez tenhamos sido mal acostumados pela filosofia idealista, que defendeu,
por muitos anos, que a terra era o centro do universo e por isso o "homem"
deu-se a incumbência de tomar conta dela. "Crescer e multiplicar-se",
colocando-se acima das demais espécies, considerando-se o senhor da natureza.
Essa visão equivocada fez com que os seres humanos se multiplicassem,
mutilando as demais espécies, que também deveriam multiplicar-se.
Nessa competição fratricida, enquanto os seres humanos se multiplicaram
progressivamente, muitas espécies subtraíram-se indiscriminadamente.
Talvez as duas espécies que mais evoluam no planeta sejam a humana e
as bacterianas que, de tempos em tempos, causam na espécie humana epidemias
incontroláveis.
Quando os "Sem Terra" resgatam dentro de si a vontade de voltar a
ser gente, buscam a terra e, num diálogo emocionado, às vezes
com lágrimas e sangue vertido por balas, chegam à constatação
de que o esqueleto do homem se parece com o esqueleto do latifúndio,
a carne de ambos é devorada pelo capital. Por isso, fome e latifúndio
têm a mesma cara, a mesma origem e a mesma identidade. Não são
sanguinários o tempo todo. Preferem secar o corpo lentamente, até
que o esqueleto se entregue e nada mais possa produzir. E então deite
os ossos em algum lugar para que a terra os recolha e, através de sua
saliva, os dissolva.
Terra e homem têm a mesma história de desconstrução
da própria existência. O capital inaugurou a era do descartável.
Sobre a terra joga-se lixo, sobre os seres humanos joga-se o preconceito e a
desocupação, desconstrói-se o planeta, e o cidadão.
Desta maneira, parte da terra e parte dos seres humanos são jogadas no
berço da exclusão para chorar a dor da falta de cuidado e respeito.
Esta trajetória começou há 500 anos atrás em nosso
país. Enquanto grupos poderosos nacionais e internacionais torturam e
diminuem os seres humanos, deixando-os sem trabalho, estudo, saúde e
condições dignas de vida, a terra é despida de suas florestas,
envenenada pelos poros, intoxicando as espécies de microorganismos que
se debatem em seu ventre ou no leito seco dos rios como as lágrimas da
mãe que secam, cansada de chorar de dor e sofrimento sem solução.
É esse encontro dos diminuídos, no final do segundo milênio,
depois de 500 anos de torturas, que leva esqueletos humanos, despidos de todos
os recursos, a se decidirem abraçar-se à terra, para extrair de
seu corpo o perfume que move a dignidade de um povo em marcha, na defesa da
vida e do planeta.
Este encontro é conflitivo. Há os acostumados a desmatar e matar,
sem respeitar a dor da consciência da terra que vê o fogo queimar,
uma a uma, suas pernas-árvores, para depois cobrir seu rosto com capim
ou simplesmente nada plantar, ficando esta imensa ferida, cortes profundos feitos
pela erosão, enquanto as florestas vão embora para serem desmanchadas
pelos dentes afiados das máquinas; e com isso as nuvens entristecidas
se retiram deixando que o sol quente endureça a crosta da machucadura
ressecada, impedindo aparecer vegetação alguma.
Estes tristes hábitos também compõem a cultura. Estes
velhos ensinamentos ainda permanecem em muitas consciências de esqueletos
agora assentados. Demora serem reconhecidos pela terra, pois, na pressa de fazê-la
gerar alimento, ainda a maltratam. Buscam produzir a existência da mesma
forma que os predadores fizeram no passado. Por isso a terra fecha os olhos
para não ver as sementes produzirem caules enfraquecidos e raquíticos,
que não alimentam e nem satisfazem os anseios de quem as semeou, ainda
desenvolvendo a cultura da mutilação.
Os emissários do capital, assim que percebem o vento tremular uma bandeira
vermelha, entendem que há outro território conquistado. Correm
com a saliva entre os dentes, pela ansiedade de vender máquinas possantes,
insumos, venenos e sementes para mover a indústria da destruição
do solo e da esperança de vermos nascer daí novos camponeses libertos
de todas as taras e vícios. Nestes casos, a tentação ainda
se sobrepõe à consciência e à lei do menor esforço
leva a consumir tecnologias que não favorecem a recuperação
da terra.
Há tecnologias que vêm para o bem da terra e do ser humano, devem
ser abraçadas e utilizadas para fazer companhia ao desenvolvimento. E
aquelas que vêm para destruir e prejudicar devem ser rejeitadas e impossibilitadas
de seguir em frente. Nem tudo o que se descobre e inventa está a favor
da vida e do desenvolvimento. A rigor, a modernização tecnológica
no campo brasileiro não chegou a ser sinônimo de desenvolvimento,
porque, como quintal do colonizador norte-americano, aprendemos a consumir pacotes
e não utilizar nossos próprios conhecimentos. Prova-se, assim,
que dependência, ao invés de desenvolvimento, significa deformação
da existência.
Mas há também os que se rebelaram contra aqueles que desrespeitam
a bondade da vida e essa resistência sempre marca novas etapas, entendendo-se
que, para resgatar a dignidade do ser humano e da terra, é preciso cuidar
de alguns aspectos fundamentais, que abordamos nos tópicos seguintes:
resgatar as virtudes inscritas na memória cultural da espécie
e desenvolver a consciência estética.
Memória histórica
Como ponto de partida podemos dizer que memória é a existência
já produzida com todas as suas dimensões. De outro modo, poderíamos
dizer que a memória é a experiência feita por determinado
grupo social que se organizou para produzir coletivamente sua existência.
Talvez mais do que isto, a memória represente a ponte que vem do passado
e nos leva rumo à construção do futuro. Memória
é saber pertencer-se para poder entregar-se.
Há sabedoria na memória e é esta sabedoria que alimenta
as raízes existenciais de um povo. Sabedoria muitas vezes enterrada nas
covas do esquecimento pelas mãos interesseiras de grupos que não
querem ver o povo se reconhecer nas entrelinhas das páginas escritas,
contando a história a partir da visão do vencedor, e não
dos quase vencidos.
Dizemos, então, que há memória nos restos de raças
que ainda sobrevivem, e que lutaram em todas as gerações para
manterem-se vivas e que os livros de história não deixam ver,
para que não apareçam nas cicatrizes do tempo os nomes e os dizeres
dos incansáveis lutadores pela igualdade entre os seres humanos. Há
memória para os camponeses nas fases da lua, quando buscam plantar sementes
no período mais escuro, para que germinem e não apareçam
carunchos na colheita. Mas as empresas poluidoras preferem fazer nossa juventude
acreditar que, para cada tipo de inseto ou erva daninha, existe um tipo de veneno
que chamam carinhosamente de defensivos.
Há também memória no trabalho artesanal dos velhos camponeses
das gerações passadas, que obrigavam-se a desenvolver os próprios
instrumentos de trabalho antes da indústria apropriar-se deles, transformá-los,
devolvê-los e modernizá-los, porém com custo elevado e manutenção
insuportável.
Há memória na culinária das etnias, onde o conhecimento
passava-se afetivamente para as moças que se orgulhavam de estarem prontas
para casar, pois já sabiam cozinhar. Atualmente, a indústria dos
enlatados e temperados roubou o gosto do paladar familiar e as pessoas se envenenam
comendo sem controle todo tipo de alimento artificial, fazendo com que vivamos
a maior contradição jamais vista na história, na incidência
de causas de morte por intoxicação alimentar. Temos duas causas
principais: morre-se de fome e morre-se de obesidade. Uns morrem sem sangue
ou porque este que usamos tem "pouca tinta" (4); e outros morrem por
terem colesterol alto, devido ao excesso de gordura no sangue.
Há memória nas fotografias em preto e branco onde aparecem os
jardins, os pomares das velhas casas de madeira ou barro, onde enormes famílias
reunidas até a quarta geração faziam suas confraternizações.
O tempo foi amarelando as fotografias, levando os conhecimentos, deixando em
seu lugar o vazio e a falta de imaginação de como era naquele
tempo.
Nos livros também há memória, contadas pelas mãos
hábeis de escritores verdadeiramente humanos que se empenharam em registrar
detalhes daquilo que o pensamento não conseguiria guardar, uma identidade
perdida que o analfabetismo nos tira o direito de buscar no registro das letras.
Nas lembranças há memória. Nos contos, fábulas e
lendas. Na vida dos lutadores do povo entregue inteirinha na construção
de um sonho, mas que a classe dominante esconde, evitando muitas vezes deixar
sinais até de onde esconderam seus ossos depois de assassinados, porque
temem que a voz do sentimento fale mais alto que as palavras e que o povo se
reconheça em seus heróis e queira resgatar seus ideais de uma
só vez.
Há memória na crença traduzida de geração
em geração, manipulada por oportunistas que usam da boa vontade
e da fé das pessoas para facilitar aos opressores enfiar mais fundo a
espada da dominação na consciência já sem cor da
classe trabalhadora e desempregada.
Há conhecimentos biológicos e farmacológicos, desenvolvidos
naturalmente pelas nossas gerações passadas, cujos inventos as
empresas multinacionais patenteiam hoje como se tivessem surgido do nada.
Enfim, nos menores detalhes há a memória que faz parte da construção
da existência de nossos antepassados e que dorme em alguma dobra do embrulho
que traz a história. Até nossas mãos têm sabedoria
e memória, mas cabe a nós ter consciência da importância
deste passado, para sabermos como olhar corretamente para o futuro.
Quando vamos para a terra, esta memória nos acompanha e é com
ela que principiamos a organização de um novo momento histórico,
procurando produzir uma nova existência.
As virtudes extraordinárias
Virtude para nós é a capacidade que temos de fazer coisas extraordinárias
permanentemente. Somente desenvolve virtudes aquele que tem capacidade de voltar-se
para o bem. Os poderosos temem as virtudes porque elas têm o poder de
provocar a resistência contra a dominação e contagiar aqueles
que devem derrubar suas estruturas.
Se virtudes são capacidades extraordinárias, as conquistas coletivas
sempre são vitórias extraordinárias. É por isso
que os lutadores trazem o coração carregado de virtudes, onde
o povo em marcha procura encostar-se para buscar ali a energia que lhes falta.
O povo sente vontade de abraçar seus líderes por causa das virtudes
que estes possuem e porque sente que elas também lhes pertencem.
Muitas vezes, até mesmo na fraqueza se manifestam virtudes que jamais
imaginávamos existir, e elas têm o poder de alastramento que pode
impulsionar grandes mudanças em curtos períodos de tempo. Para
ilustrar, destacamos a história dos escravos romanos. Encontramos nos
registros históricos que, no ano 71 a.C., houve na antiga Roma uma revolta
de escravos que durou cerca de dois anos. Essa revolta foi comandada por Spartacus,
um escravo que despertou para o sonho de liberdade e ao seu redor conseguiu
arrebanhar cerca de 20 mil escravos, um número pouco significativo diante
do poder do império romano na época comandado por Caius Crassus.
As sucessivas batalhas iam cada vez mais dando moral e referência aos
escravos, atraindo outros escravos para a luta, até o dia em que foram
capturados e crucificados, pois o instrumento da pena de morte da época
era a cruz.
Durante o tempo que durou a revolta, os poderosos tentavam de todos os meios
dizer que já haviam dominado os escravos e, de dia, espalhavam notícias
procurando convencer a população dessa mentira. Mas, durante a
noite, o clarão das fogueiras acesas denunciava que os escravos ainda
estavam lá, resistindo, e este esplendor convidava os demais escravos
a sairem das mansões e dos palácios e somaram-se a eles. Portanto,
não era a força dos escravos que os poderosos temiam, mas sim
as virtudes que eles apresentavam, e as fogueiras eram fundamentais para desenvolver
esta representação.
De onde vinha esta força? Vinha da virtude da confiança. "Não
há uma definição clara para um homem que conduz outros
homens. O comando é uma coisa rara e intangível, sobretudo quando
não se apóia nem na força nem na glória. Qualquer
homem pode dar ordens, mas dá-las de maneira a que outros obedeçam
é uma qualidade" (5), e esta qualidade Spartacus possuía.
Na medida em que os trabalhadores Sem Terra decidem abandonar a vida de "indigência",
despertam em si o sonho de liberdade, e passam a desenvolver e apresentar virtudes
que intimidam os poderosos que mentem, usando agora a televisão e os
jornais, dizendo que derrotaram os lutadores da reforma agrária. Mas,
à noite, quando menos esperam, lá se vão legiões
de famílias empilhadas em caminhões ocupar fazendas abandonadas
e descobrindo a possibilidade de renascer. Aos poucos, o vermelho das bandeiras,
como se fosse o esplendor de uma grande fogueira, avisa que ali os escravos
buscam a liberdade e convidam outros tantos a forjarem juntos o próprio
destino.
Desta maneira, cria-se uma nova cultura em torno das virtudes. Esquemas de
organização são desenvolvidos e experimentados. Pais e
mães de famílias, que até pouco tempo eram apenas chamados
pelos filhos, agora são anunciados ao microfone para participar de reuniões
onde decidirão o futuro de suas vidas. Passam a assumir responsabilidades,
liderar pequenos grupos e desenvolver tarefas que beneficiam a coletividade.
Extingue-se temporariamente o machismo e a dominação de um sobre
o outro, porque na estabilidade podemos ser diferentes, mas no perigo somos
todos iguais. A insegurança transforma-se em desafio. A mãe outrora
tímida e submissa, abraçada aos filhos, coloca-se em frente aos
pelotões sanguinários que se apresentam para manter a ordem apodrecida.
Permanecendo alguns dias já se vê nascer ali uma cidade, neblinada
pela solidariedade. Nascem cabanas que servem de casas, escolas feitas de plástico
e bancos de varas roliças, mas as crianças aprendem o que tem
de melhor na esfera da educação infantil. Em poucos dias estão
falando frases de Paulo Freire e de outros educadores importantes como Anton
S. Makarenco (6), como a que diz:
estou convencido de que o objetivo da nossa educação consiste
não só em formar um indivíduo criador, um indivíduo
cidadão capaz de participar com a maior eficiência na construção
do Estado. Nós devemos formar uma pessoa que sem falta seja feliz. (7)
Através de comissões, busca-se resolver os problemas que a própria
convivência social produz, como é o caso do lixo. Nas cidades costuma-se
atribuir a tarefa da limpeza à administração pública
e, se o prefeito não tomar providências, a cidade fica insuportável
pelo simples fato de que as pessoas pagam impostos. Ora, os impostos não
podem ter o direito de eliminar a solidariedade entre as pessoas e o cuidado
com a preservação da vida! Aqui surge uma virtude fundamental,
que é a da preocupação com o zelo pelo que é nosso.
Os conceitos de público e privado, sem diminuir a responsabilidade de
ninguém, são superados, na medida em que o processo educativo
reconstrói o ser humano em outra direção, exigindo sua
participação, e isto se torna cultura.
Há dizeres e pensamentos produzidos que se transformam em trincheiras
ideológicas, buscando não só o melhoramento do comportamento,
mas a limpeza dos vícios que se acumularam em cada consciência,
como o lixo das perversidades que endurecem as relações e, por
isso, precisamos combatê-las com doçura e energia. Vimos em uma
escola esta criação ideológica: "Escola limpa não
é a que mais se limpa, mas a que menos se suja". É um verdadeiro
chamado à responsabilidade com aquilo que é público.
Em poucos dias abrem-se cacimbas coletivas e inicia-se o tratamento da água.
Banheiros coletivos para homens e outros para as mulheres. Estabelecem-se normas
de convivência e assim reorganiza-se em poucos dias a nova forma de produzir
a existência humana, acordando virtudes adormecidas no leito do tempo,
que passam a povoar os sentimentos e controlar as vontades que levam aos desequilíbrios
na convivência social.
Os poderosos se espantam quando observam um enorme aglomerado de pessoas onde
não se requisita força policial para intimidar e manter a ordem.
Os próprios Sem Terra organizam e tudo funciona sem prisões nem
repressão.
Nas marchas organizam-se longas filas que causam inveja aos que assistem à
passagem. Emocionadas, as pessoas esperam o momento para lançarem-se
sobre os camihantes, para abraçar e derramar lágrimas quentes
nos seus ombros, como bálsamo refrescante que alivia as dores do caminho.
Também nas marchas não se requisita força policial para
orientar o trânsito.
É a força da terra que desperta virtudes, onde o comando não
emite ordens, solicita e recomenda cuidado pelo simples fato de saber que ali
vão seres humanos, que não são números nem tampouco
indivíduos enfileirados, mas que possuem sentimentos e levam no coração
saudades dos filhos que ficaram nos acampamentos, cuidados por outros pais que
não puderam seguir a marcha.
Se a saudade na distância é forte, a vontade de chegar é
maior. Com os olhos fixos no vazio do horizonte que se coloca à frente,
cada um quer saber o que se esconde após o topo da ladeira. Assim vivem
as utopias. A cada topo alcançado, novo topo se deve alcançar,
mas valeu a pena ter caminhado. Sem esta persistência, a história
não tem sentido.
Este é o caminho que leva à reconstrução e coloca
a revolução em marcha. Não é fácil reconstruir-se
quando já nos tiraram o material mais precioso que é a dignidade
de ser gente. Um ser humano reconstrói-se na medida em que acredita que
dentro de si há material importante para tapar os vazios que a dominação
cavou. Não é fácil ser livre quando ainda não aprendemos
a pronunciar a palavra liberdade.
Caminhamos ocupando espaços que outrora temíamos ocupar. Marchar
é mais do que viajar, é caminhar em busca de surpresas. A cada
passo uma emoção, um gesto de carinho, uma mão estendida
que parece querer esculpir em nós o novo homem ou mulher que pretendemos
ser e, como estátuas inacabadas, abraçamos os escultores, como
a pedir ajuda para que encham os espaços vazios que descobrimos dentro
de nós, pelo fato de, um dia, os opressores nos terem feito acreditar
que nada mais éramos e nada mais poderíamos ser.
É caminhando que descobrimos o espaço vazio do analfabetismo
que viaja conosco e nos provoca a perguntar ao caminhante ao lado o que dizem
as letras em cada placa à beira da estrada. Ou quando alguém nos
entrega um panfleto de solidariedade e, envergonhados, o dobramos e o colocamos
com respeito no bolso da mochila que vai molhada sobre nossos ombros.
É caminhando que vemos o vazio do latifúndio protegido por cercas
e a fome rondando as cidades.
É caminhando que vemos o medo nos olhos das janelas das casas, escondidas
atrás de grades, temendo que os pobres queiram fazer justiça pelos
longos anos de violência aplicada para acumular riquezas.
É caminhando que vamos descobrindo e esculpindo em nós uma nova
consciência, porque os olhos parecem ver não o que está
ocupado, mas sim os espaços que se deve ocupar.
Há muitos espaços vazios que ao esculpir, vamos descobrindo.
O latifúndio, em 500 anos de história do Brasil, não destruiu
apenas a terra, mas também a consciência dos pobres e trabalhadores,
por isso milhões deles andam como se estivessem cegos. Em cada cabeça
há um latifúndio que não deixa produzir virtudes e valores,
que embrutece as relações sociais e humanas, que abre profundos
rasgos de erosão na memória, fazendo-nos acreditar que a história
começou com nosso nascimento individual, antes disso "nada"
de importante existiu. É a cultura do vazio e do esquecimento.
Descobrimos também neste caminhar a importância da mão
amiga que nos arrasta para o futuro e neste espaço vamos trançando
experiências, conhecimentos, comportamentos, idéias, virtudes,
enfim, vamos construindo uma verdadeira interação.
A existência do espaço interativo é fundamental para o
processo de construção do conhecimento, na formação
dos sujeitos, e para o avanço da organização do movimento
social. Pois é também nesse espaço onde se desenvolvem
as relações, articulações e alianças. (8)
Estas descobertas e vivências, misturam-se às ansiedades e convidam
para que produzamos nossa nova existência
A consciência estética
A estética, no seu sentido amplo, deve significar a capacidade que o
ser humano tem de marcar sua existência no mundo, produzindo objetos úteis
e belos para sua sobrevivência, dando a eles um sentido de continuidade
da própria existência. O belo se eterniza na permanência
dos objetos criados. Neste sentido, emanamos a beleza que plenifica gestos e
razões como identidade de um povo.
Na origem da palavra estética está o sentir. Ela vem do grego
aisthesis, que significa a faculdade de sentir. Logo, ela se torna importante
para a vida humana, pois está ligada ao desenvolvimento da criatividade
e da capacidade de sentir, elementos que formam as características da
consciência estética.
Como a produção da existência consciente exige elevada
capacidade de criatividade, pois mesmo nos pequenos detalhes usamos o intelecto
e as mãos para produzir coisas e colocá-las em ordem, podemos
considerar todo e qualquer ser humano artista e arquiteto de sua própria
história. Para isto se torna fundamental a criação da consciência
estética. Esta consciência estética se configura na qualidade
de gostar. Desenvolve-se desta forma a pedagogia do bom gosto. Este sentido
acrescenta-se em nós da mesma forma como qualquer outro, e deve ser exercitado
diariamente, caso contrário atrofia e desaparece. É a busca da
beleza que nos faz pentear os cabelos todos os dias, cortá-los quando
vemos que tiram a beleza dos traços da face, como se a moldura estivesse
deformando-se.
A obra de arte de um camponês Sem Terra não se encontra em paisagens
pintadas, ou em escritos filosóficos que se tomam obras, mas na paisagem
real que se torna poesia. Aquilo que é novidade na natureza para alguns,
para um Sem Terra não é, ou pode ter outro significado. O pôr-do-sol,
que para muitos pode representar um fenômeno artístico, pintado
pelas mãos invisíveis do criador da natureza, para o camponês
pode representar apenas a fadiga de um dia duramente trabalhado, onde agora,
ambos "vermelhos" de cansaço, no colo da noite adormecerão,
para renascerem no dia seguinte e, dispostos, acordarem o amanhecer.
Nossa preocupação está então em saber valorizar
o que de belo há na natureza e, usando as suas próprias forças,
tornar mais bela a vida cotidiana.
A estética representada pela arte no mundo do capital se transforma
em mercadoria, utilizada como elemento de poder para dominação
e alienação das pessoas. A beleza em nossos assentamentos não
é para ser comercializada, mas sim para demonstrar que caminhamos rumo
à reconstrução da vida com as flores cultivadas, com o
único objetivo de perfumar o caminho neste quadro de arte pintado pelas
mãos de um desconhecido, que usou a enxada e os dedos como instrumentos
básicos da edificação desta grande obra. Assim, a cor marrom
está na própria terra e o verde está contido na própria
muda da flor, que se deita sobre o leito macio preparado para a fecundação.
Assim irá fazer parte da paisagem.
Nossa pintura tem mais sensibilidade por ser real, porque respira e emite perfume
sensibilizando também nossa consciência estética. Essa pintura
é real. Acima de tudo, porque o pintor não pode imaginar-se fora.
Está dentro, e sem ele a paisagem não terá a mesma beleza.
Este ser social, transformado em pintor, existe na realidade objetiva e subjetiva.
Ocupa um lugar de destaque, movimentando-se de um lugar para outro para assumir
um posto de melhor ângulo e continuar sua obra. Esta pintura é
bela porque está em permanente movimento. Somente se pode olhar uma vez
e fixar a imagem, no momento seguinte já não é a mesma
paisagem porque muitos elementos mudaram de lugar, as nuvens foram para longe,
os pássaros voaram em busca de outros galhos e o homem abraçou-se
à mulher para emergirem em uma nova relação de igualdade
e prazer.
O contato com esta beleza natural educa os demais sentidos, como amar, gostar,
admirar, sorrir e cantar. Desperta interesse coletivo de reproduzir esta obra
de arte. A classe dominante, quando vai aos leilões de arte, compra por
altos preços obras que leva para casa, trancando-as em cofres, tirando
a liberdade da beleza poder tocar os sentimentos das pessoas e fazê-las
sentirem-se mais humanas. Escondem as pinturas devido ao egoísmo que
os amarra e porque são incapazes de reproduzi-las. Nessa insegurança,
oprimem-nas através da escuridão das paredes de aço, não
deixando que falem e nem digam, com seus traços, que para ser verdadeiramente
gente é preciso criar. Os dominadores não são puramente
humanos, se assemelham às máquinas, sem sentimentos, sem alegria
e sem imaginação. Criam os mundos de fantasias onde o capital
lhes dá as ordens para cada movimento que devem fazer. Eles não
sabem construir urna paisagem livre e bela. Quando necessitam criar, chamam
um trabalhador para desenhar-lhes algo que possam exibir aos seus colegas. É
a cultura da frieza e da dominação.
Porque então damos flores de presente? É errado fazer isto? Não.
Damos flores de presente porque somos incapazes de explicar com palavras o que
sentimos. Precisamos das pétalas e do perfume para que as mãos
possam externar nossos sentimentos. Mas mesmo assim as flores murcham para dizer
que a beleza não está em um gesto isolado. É preciso continuar
sensibilizando nossa consciência para que ela não se acomode e
crie sem limites novos gestos de carinho e afeição.
Nós somos mais criativos porque somos mais livres, e criamos nossas
paisagens sem medo de que alguém as roube, pois sua grandeza física
e estética se torna impossível de transportar. Quando conseguem
roubá-las, apenas levam pedaços e a beleza desapareceria logo
porque suporta poucos dias a arrogância humana. Talvez seja por isso que
as flores murcham, porque não aceitam conviver com a insensibilidade
que, ao retirá-las dos jardins para colocá-las sobre as mesas,
deixam para trás as raízes que lhes deram a vida. A beleza somente
sobrevive quando estiver ligada às suas raízes.
Se somos nós que fazemos a história, significa dizer que nela
ficam nossas impressões digitais. Seremos reconhecidos por elas quando
nossos descendentes forem recordar do pedaço de existência que
nos coube viver e produzir. As obras de "arte" estarão presentes
em tudo, porque tudo foi feito com a imaginação, força
física e habilidade de nossas mãos, no espaço aberto da
natureza.
Desta forma a estética está presente em tudo o que fazemos. Ela
é a intermediação que existe entre o querer e o fazer,
entre o servir e o sentir. Isto nos leva a aproveitar pedaços da grande
paisagem já pronta, para apenas acrescentarmos aquilo que o imaginário
humano consegue inventar. Plantamos, entre as árvores, casas com chaminés
fumegantes. Espalhamos animais domésticos por entre as árvores,
aproximamos as flores das casas e semeamos alimentos por uma outra extensão;
ao fundo, o rio corre mansamente e, ao pé da montanha, limpamos um lugar
para banhar-nos, deixando que as águas levem embora nossas canseiras
e mágoas. Compõem-se assim as paisagens reais. Cada lote é
um quadro pintado pela capacidade de cada família de pintores.
Há desequilíbrios. São acidentes provocados por pintores
descuidados que, na pressa de fazer sua paisagem, derramam mais tinta do que
o necessário, borrando parte da tela com venenos, queimadas e lixo, trazidos
nas compras do supermercado.
Levam-se anos e às vezes várias gerações para se
aprender pintar a obra imaginada por nossos sonhos, exatamente porque o sonho
não se realiza sem a recriação do homem e da natureza.
Ao mesmo tempo em que criamos, nos recriamos. Pintar é também
se pintar nesta paisagem viva. A consciência estética é
lenta para se desenvolver, mas sem ela é impossível reconstruir
a paisagem florida onde deverá multiplicar-se a vida humana e assim tomar-se
existência.
Quando a estética se toma cultura? Quando os seres humanos descobrem
que a beleza é parte integrante do ambiente onde vivem, até o
dia da partida, a hora de passá-lo para outros seres mais jovens.
Quando o tempo determinar que não mais nos quer ver andando sobre a
terra, pede-nos para retirar-nos e deitar-nos de barriga para cima, onde a terra,
num diálogo silencioso, nos transformará e nos distribuirá
para que as demais espécies possam sugar nossa energia e fortalecer sua
existência, misturada à nossa nova forma de existir. Desta maneira
é que a terra não é só terra nem a árvore
é somente árvore, assim como o indivíduo não é
somente indivíduo As células e os átomos que compõem
a matéria se deslocam em um movimento vivo, e introjetam-se, entrelaçando-se
para formar uma "nova" matéria. Há momentos em que pisamos
sobre a terra e comemos as plantas. No momento seguinte entramos na terra e
as plantas nos comem com suas raízes e nos transformam em plantas. Este
morrer e viver permanentemente é que possibilitou nosso planeta estabelecer
esta harmonia em milhões de anos de existência.
Esta intima relação não está nas conseqüências,
mas na causa que originou a intimidade entre terra e homem. Esta origem está
no húmus. Daí que homem vem de humus. Somos esta mistura de pó
e água com características novas, nos locomovendo; sonhamos, pensamos,
acreditamos e caminhamos em direção à construção
da utopia. Somos, em resumo, esta terra boa em movimento.
Somos este húmus sem-terra, andarilho, que se rebela por ser violentamente
afastado da terra e só pode ter utilidade voltando a ela. Pela morte
ou pela luta. Em ambas as situações há a retomada da terra,
para tornar-se terra ou para tirar dela o sustento e manter este húmus
humano em movimento. Por esta razão é que nossa consciência
ecológica se revolta quando há desrespeito com a natureza, porque
na seiva das árvores há sinais de sangue de nossos antepassados
que foram absorvidos pelas raízes das plantas.
Na medida em que conquistamos a terra, há um desafio enorme de reconstituição
da história desses locais: nos sentimos chamados a reconstruir as florestas
através do plantio de árvores, a edificar pomares e jardins, mesmo
ao redor dos barracos de lona crescem flores coloridas, plantadas pela simples
vontade de tornar o local mais bonito e atraente.
Em uma ocupação, quando finda o período de acampamento
e a terra foi liberada, ficam resquícios de guerra, lonas rasgadas, varas
enfileiradas que serviam de esteios para as casas, fogões de barro abandonados,
restos de potes quebrados, sandálias desgastadas e tantos outros objetos
esquecidos, que ajudaram na resistência física e sentimental. Mas
nesta dispersão de coisas aparecem árvores e flores plantadas
no desespero da ameaça do despejo, que psicologicamente ajudaram a imaginar
que nas raízes das árvores e nas flores estava a simbologia da
resistência e da ligação à terra; que os encarregados
pelo despejo e pela violação dos lares teriam que fazer força
para arrancar-nos dali; e que, se passasse um tempo significativo, não
nos arrancariam mais.
A consciência ecológica e estética nos diz que devemos
colocar ordem nos destroços e que, ao mesmo tempo em que partimos para
a construção das novas casas, o terreno que serviu de tapete para
instalarmos nossos sonhos e preocupações deverá ficar limpo
e organizado. Limpa-se o solo pisado e endurecido para plantar árvores
e fazer renascer a vida, junto com a libertação da terra e das
pessoas que acreditaram e venceram.
Chega o dia em que a luta vence a opressão. Chega o tempo de construir
as casas em meio a um choque de interesses. O governo aposta que uma casa de
42 metros quadrados é suficiente para uma família morar e, para
impossibilitar sugestões, impõe uma planta comum para todos. Na
vontade de possuir a casa, cada família aceita a imposição,
mas assim que passa a habitar nela percebe que não satisfaz as necessidades,
pois possui apenas quatro cômodos e às vezes o casal tem oito filhos
e a vida fica incômoda. A necessidade desafia a criatividade, e lá
se vão todos se empenhar na construção de varanda para
aumentar a cozinha e os dormitórios, agora de forma rústica. Pode-se
perder em beleza, mas ganha-se em criatividade, iniciativa e comodidade. É
o anseio de se ter uma casa, com condições de abrigar as pessoas
da família com todo conforto possível, que nos faz desenvolver
a criatividade.
Segue-se em frente e percebe-se que o poder do criador agora é humano.
Animais são bem tratados e enfeitados, principalmente os cavalos que
ganham novos apetrechos e ferraduras. Os pomares florescem. A bandeira do MST
é pintada nas paredes dos galpões, casas e escolas. Não
há uma praça de assentamento em que não esteja lá
uma bandeira dançando ao sopro do vento, contrastando com o verde da
vegetação em terra. Os animais domésticos passeiam entre
as crianças de ventres livres, que correm em direção aos
seus próprios brinquedos. As mulheres recolhem dos varais as roupas secas
e macias, já sem remendos, após uma jornada de trabalho gratificante
na cooperação comunitária. As portas das casas se abrem
uma a uma lentamente, como se quisessem dizer boa noite aos jovens que saem
para ver a lua nascendo. Não há muros em frente às casas,
as grades do medo e da exclusão ficaram em alguma dobra do passado. E
na linha da reconstrução e do desenvolvimento humano, vêm
os cuidados estéticos com o próprio ser humano.
É a razão maior de produzir cada obra de arte em cada área
conquistada e em cada ser humano, buscando refletir sobre cada ruga estampada
na face da existência, que distingue e que nos dá identidade. Desta
forma melhora-se a aparência. Reconstituem-se dentaduras, melhora-se o
vestuário, trocam-se os móveis da casa, adquirem-se novos eletrodomésticos,
enfim, toma-se consciência da importância da aparência física
como filhos da terra, recriados por ela em busca da manutenção
da dignidade.
O trabalho é, desde o início, o fator de produção
do próprio ser humano. No decorrer da história da humanidade o
trabalho foi se tornando algo punitivo e pouco prazeroso, devido à escravidão
e à exploração do capital no desenvolvimento das forças
produtivas.
No resgate do ser humano, resgata-se o sentido do trabalho que possa reconstruir
de forma voluntária o ser deformado. Também resgata-se o sentido
das técnicas que mantenham a estética do corpo. Isto irá
despertar o interesse pela beleza como método pedagógico na retificação
da conduta. "0 instrumento principal da influência pedagógica
deve ser o método intuitivo demonstrativo da beleza na arte, no trabalho
e no comportamento dos homens." (9) Essa criação antecipada
como referência, influi para que os demais seres sociais Sem Terra sintam
influência deste meio, e adquiram características complementares,
retificando seus hábitos.
Pela urgência de produzir, muitas pessoas lançam mão de
instrumentos e insumos que prejudicam, mutilam e deformam o corpo humano, fruto
de um método demonstrativo do trabalho depredador. Carrega-se água
na cabeça enquanto há múltiplas formas de fazer a água
chegar sem esforço em cada casa, e usam-se defensivos, "ofensivos"
agrícolas, quando há dezenas de formas de combater as pragas e
doenças, fruto do desconhecimento e da alienação por parte
das empresas de venenos, que estabelecem as bases de seus lucros sobre a depredação
e destruição do ser humano e da natureza.
As tentações do passado às vezes nos obrigam a virar a
cabeça para ver o que não queremos mudar; é como se uma
força misteriosa nos empurrasse para o lado de um coordenador e entregássemos
a ele o poder das ordens e ficássemos aguardando o momento de agir. Se
não há ordens não haverá ação. Aí
nasce a centralização do poder e a vontade de ser superior aos
demais seres humanos. Essa apatia se transforma em conformismo e assim morre
a indignação.
O gosto pelo belo está em todos os aspectos da vida e da organização
social e política, por isso é que a estética está
em todos os sentidos orientando-nos que um simples gesto tem sua beleza. A forma
de falar, de sorrir e dizer tem sua beleza. Há pessoas que falam muito
e não cansam seus ouvintes, quando terminam de falar parece ouvir-se
um ruído de pena por terem terminado. Há beleza na forma de organizar
e dirigir. Muitos líderes têm a perspicácia de indicar o
caminho e, sem muitas explicações, convencem seus companheiros
e companheiras. Assim, tornamos a estética parte de nossa existência,
uma parte agradável que dá qualidade aos segundos em que respiramos
e desenvolvemos em nós o gosto de viver e desenvolver a beleza.
É fundamental acreditar que desenvolvemos nossa existência num
cenário como se fosse uma tela de pintura, onde cada movimento nosso
significa um traço na montagem desta paisagem. A alegria significa as
cores alegres, a tristeza e o mau humor as cores escuras e tristes. Revisando
nossa história podemos perceber claramente como está pintado o
quadro da história particular de cada um. Se foi bela, o quadro estará
perfeitamente pintado com cores alegres, se foi uma vida atribulada será
um quadro triste, onde predominam as cores escuras. Importante é que
não tenhamos medo de expor na galeria de arte da história este
quadro, e ter consciência de que é possível melhorá-lo,
agora que temos mais consciência da importância de nossa existência.
Sobre as cores tristes é possível colocar cores alegres e fazer
o cenário de nossa história mudar. Por isso é preciso acreditar
em nossa capacidade de pintores, adormecida em nossa consciência. Dormem
dentro de nós poetas, escritores, contadores de fábulas, músicos
e humoristas; somente nossa auto-estima pode acordá-los.
Temos nossos ideais políticos, organizativos, econômicos, etc.
Precisamos estabelecer também ideais estéticos que possibilitem
nossa intervenção no cenário histórico para transformá-lo,
a fim de que vivamos em harmonia com todos os tipos de vida e socialmente felizes,
bebendo nesta fonte limpa da beleza.
1 Nota do editor: Este texto constitui parte do Capítulo I do Caderno
de Formação n.34, intitulado O MST e a Cultura, publicado pelo
Coletivo Nacional do Setor de Cultura do MST (São Paulo, 2000) (Reprodução
autorizada). No prefácio, o autor explicita o caráter de existência
e resistência do projeto cultural dos assentamentos, em termos de educação,
trabalho, preservação da natureza, mecanização,
estética e produção cultural. Após um preâmbulo
sobre o significado da cultura para Karl Marx, ele faz uma retrospectiva da
história da exclusão social no Brasil na qual os Sem Terra se
inserem mas cujo curso tentam reverter. Discorrendo sobre a cultura dos rejeitados,
ele ressalta estarem inscritas as marcas da história nos corpos esquálidos
e deformados dos que migram para as cidades grandes, onde suas raízes
se perdem e onde eles são, ademais, desajustados. Embora a perda seja
irrecuperável, ele argumenta, as raízes com a cultura do campo
podem ser religadas; busca-se, assim, um renascer, através do cultivo
da sabedoria milenar do homem do campo e dos valores que eles guardam na memória,
como lealdade e solidariedade. A cultura caipira, predominantemente oral, também
permanece nos arquivos da memória de um povo que, contra 50 anos de vida
urbana, tem 450 anos de existência ligada à terra (Bogo, 2000:
3-22).
2 Ademar Bogo é militante do MST, ex-seminarista, que atua no Setor
de Formação do Movimento. Sistematiza em livros e Cadernos de
Formação diversos aspectos da cultura do Movimento, como a mística,
a educação e a música. É também conhecido
como poeta e pela autoria de músicas utilizadas pelo movimento, notadamente
o hino do MST.
3 Georges Politizer. Princípios fundamentais de filosofia. São
Paulo: Hemus Editora, [s.d.]. p. 108.
4 João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, 14. ed. 1980, p. 71
5 Fast Howard. Spartacus. Fundação Europa-América de Portugal,
1974, p. 118.
6 Anton Makarenco, renomado pedagogo russo que se dedicou à educação
de crianças de rua de 1920 a 1935.
7 Anton Makarenco. Problemas de educação escolar. Moscou: Editora
Progresso, 1986, p. 29.
8 Bernardo Mançano Fernandes. MST: Formação e territorialização.
São Paulo: Editora Hucitec, 1996, p. 223.
9 Verb, M.A. La educación estética de los escolares. In Teoría
y metodología de la educación comunista en la escuela. Combinado
Poligráfico de Guantánamo, 1984,
p.217-18.
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