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As Imagens e as Vozes da Despossessão: A Luta pela Terra e a Cultura Emergente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)

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Português (change language to English)

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Estudos, depoimentos & referências -> Ensaios 9 recursos (Editado por Else R P Vieira. Tradução © Thomas Burns.)

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Autor:

Sávio Bones

Título:

Com as mãos calejadas de poesia:
A constituição de intelectuais orgânicos pelo MST

"Se valem dos poetas os presságios".
Ovídio, Metamorfoses.

Antônio Gramsci, logo nas primeiras linhas de seus "Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais" – reunidos no décimo segundo volume dos seus Cadernos do Cárcere – afirma que "Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também social e político..."(2) Esta criação – historicamente determinada e fruto de formações sociais específicas – é filha direta da fricção entre a coletividade e a realidade em que ela se constitui. A essa realidade correspondem divisões de tarefas, especializações e necessidades de desenvolvimento e complexificação de qualquer agrupamento humano. Na medida em que ela se produz, reproduz e desenvolve, tende a ser estimulada e construída conscientemente.

Desta forma, é possível que uma intelectualidade própria abarque múltiplas áreas de intervenção e articule suas diversas atividades no seio da superestrutura, na organização de "bloco intelectual" no interior do bloco histórico e na disputa com o pensamento tradicional.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra do Brasil vem intervindo com êxito nesse estímulo e nessa construção. Tanto pela valorização de uma produção teórica que possa contribuir para o fortalecimento de sua causa, quanto na sua própria formulação e na promoção de iniciativas com diversos segmentos da população – vinculados a ele ou não – e que abarcam vários aspectos da vida e múltiplas áreas de conhecimento e interesse. Outrossim, como parte integrante destas atividades político-organizativas do MST, uma das dimensões do seu trabalho poético é incidir e contribuir no processo de "criação" de um intelectualismo orgânico e de uma militância consciente, que é particularmente importante se levarmos em conta que o vínculo entre os intelectuais orgânicos, os militantes e os grupos sociais é singularmente mais estreito quando eles são originários dos próprios grupos.

Construído e temperado no ascenso das lutas e organizações populares que se desenvolveu no Brasil nas décadas de 70 e 80, o MST, ao longo de sua existência, tornou-se o mais vigoroso e profícuo movimento camponês do País. Com amplitude tática e firmeza de princípios, tem resistido, positivamente, tanto às investidas da violência latifundiária quanto às tentativas de envolvimento e cooptação promovidas pelas forças conservadoras.

Com suas lutas, conquistas e vitórias, o Movimento recolocou na pauta política, como uma questão nacional incontornável, o combate ao monopólio da terra e a busca de um modelo agrícola alternativo, capaz de atender às necessidades e demandas das populações camponesas e das grandes maiorias: a Reforma Agrária. Nesse caminho, construiu uma vasta rede de entidades, instrumentos, militantes, apoiadores, simpatizantes e contatos que, articulados, reforçam-se mutuamente e disputam o destino das áreas rurais brasileiras apropriadas por uma minoria. Assim, com capacidade de mobilização social e combatividade incomuns, transpôs sua influência para além de si próprio. Hoje, é uma referência segura para os pioneiros sociais e os setores mais combativos do bloco histórico, no campo e na cidade.

Talvez o maior mérito dos "Sem-Terra" tenha sido a capacidade de afirmar-se num período histórico em que as forças populares se encontravam perplexas e acuadas diante da ofensiva neoliberal. O mundo do trabalho, em suas diversas dimensões, era pressionado e desmoralizado. Diziam-lhe, com poucas réplicas, que estava em vias de extinguir-se numa história afinal terminada. Potencializado pela hegemonia do "pensamento único", um sentimento brutal de impotência invadiu a sociedade civil e gerou um retrocesso de valores e direitos, um refluxo nas mobilizações e uma gama de obstáculos e dificuldades que parecia esmagar-nos. A mesmice nem sequer poupou o movimento sindical, que, desde a segunda década do século vinte, cumprira um papel destacado no processo político brasileiro, culminando na resistência democrática ao regime militar.

Como pano de fundo da reação política, a chamada terceira revolução técnico-científica e a reprodução do capital financeiro desregulada articulam – e são articuladas por – um surto de crescimento das telecomunicações e a "globalização" de determinados padrões hegemônicos que tensionam na direção de uma certa generalização de costumes. É nesse terreno que prospera a mitologia do fim das ideologias e a estandardização da vida política e social. Paradoxalmente, o contraponto particularista mergulha a sociabilidade num esgarçamento fractal e impotente, em que o outro deixa de ser a possibilidade associativa da liberdade para ser o estranho de uma das múltiplas tribos isoladas entre si. Em nome da modernidade, a direita dissemina a esquizofrenia pós-moderna. A razão e a verdade, descartadas pelo capital como coisas antediluvianas, cedem lugar ao irracionalismo e ao relativismo. A estética é rebaixada a um vulgar culto de "velhas novidades", como cantou a música popular brasileira nos versos do saudoso Cazuza.

Somente no interior deste complexo quadro histórico-cultural – aparentemente árido, mas de fato rico em contradições e transformações – será possível considerar e compreender a petulante e desafiadora "poesia dos sem-terra brasileiros". Seria até possível, mas pedante e grotesco, analisá-la a partir da vida espiritual das "elites" intelectuais, ideologicamente burguesas. Ou procurar sua realização numa glamourização, não menos pedante e grotesca, a partir de um pretenso exotismo autóctone ou de uma compaixão piegas – bem ao gosto das grandes corporações midiáticas. É preciso entendê-la como uma manifestação cultural contraposta à dissolução das alteridades sociais, à altura do seu tempo. Mas absolutamente moderna, porque portadora de um projeto radicalmente comprometido com a negação da realidade que teima em reproduzir-se.

O caminho por onde passa a criação artística dos sem-terra não é aquele do espírito inoculado por Calíope em alguns escolhidos ou de um ritual de iniciação de um suposto potencial poético inerente aos seres humanos. Ao contrário, são as avenidas da atividade humano-sensível, da práxis dos seus autores, com centralidade nos seus processos de trabalho e vidas característicos. Mesmo quando assumem autonomia em relação ao universo prático e partem para abstrações e universalidades mais abrangentes, as poesias dos camponeses do MST mantêm suas articulações com representações imediatas e buscam desvendar e transmitir experiências, compartilhar e exprimir sensações e emoções brotadas no mundo mesmo que os cerca. Suas "místicas" são profanas. Assim, no sentido inverso da hegemonia conservadora – que criou e alimenta uma distância abissal entre as conquistas estéticas humano-universais, degeneradas em abstrações inertes, e aquelas elaboradas a partir de experiências cotidianas que respeitam a transcendência – as produções dos deserdados da terra contribuem para estreitar estes vínculos humanos, abrindo novas possibilidades de elaborações e construções em níveis superiores.

Ao assumir o envolvimento em valores e posturas questionadoras da sociabilidade vigente – embutidos na produção cultural integrada à ordem e a ela associados – e demarcar com a ideologia dominante, a poesia feita pelos homens e mulheres que andam de enxada nas mãos se transmuta em meios de resistência e combate, partes integrantes de um movimento contra-hegemônico, semeador de esperanças e anunciador de um novo Brasil e de um novo mundo. Ao valorizar o desenvolvimento das potencialidades criativas de si próprios e de cada um, esses singulares menestréis são também suportes de momentos de fortalecimento individual e coletivo da auto-estima, da autoconfiança, da solidariedade entre seus companheiros, verdadeiros pedagogos da promoção e da formação dos ativistas e militantes que andam e cantam ao seu lado.

Assim são. Mas antes de ensinarem, aprendem. Ao se realizarem como autores, deixam a condição de meros espectadores feuerbachianos do mundo e investem na sua percepção, na sua interpretação, na dimensão das abstrações e na necessidade de expressá-lo na perspectiva de transformá-lo. Tal gnosiologia, que parte da sensibilidade prática, incorpora-se ao processo de estruturação de uma inteligência que favorece a abertura de novos horizontes e saberes, buscas e destinos, e o fortalecimento de uma intelectualidade orgânica. Agora, com seus membros, é possível rivalizar com os mecanismos e conteúdos ideológicos e culturais conservadores da ordem, incorporando à consciência dos trabalhadores a rebeldia e o amor à liberdade, construindo os consensos dos "de baixo" contra os consensos dos "de cima", ou seja, desafiando, em cada verso, a submissão passiva política e cultural.

O MST e seus artistas podem, pois, expressar-se, e ter consciência de fazê-lo, a partir de um novo ângulo: o da insubmissão e da crítica ao status quo. E, com base nos seus acúmulos, rompem com a dependência diante daqueles que se outorgaram – não se sabe com a licença de que Deus ou Diabo desta "terra do sol", e de Glauber Rocha (3) – o direito e o privilégio monopólico de pensar e produzir insumos culturais e políticos. Por mais singelo ou rude que seja um poema, no seu instante conseguirá expressar as angústias e alegrias, as renúncias e desejos dos que teimam em falar de si, por si mesmos, para si e os outros. Alguém duvida de que estão tensionando, a seu modo e no seu lugar, a necessidade no sentido de uma nova realidade e uma nova cultura?

Não é o caso de estabelecer uma mecanicista escala de valores estéticos excludentes e simplistas, e muito menos de criticar intelectuais de outras origens e outras vertentes que optam por cantar, generosa e admiravelmente, uma realidade com a qual apenas convivem. E são muitos, embora ainda poucos, os Chicos Buarques, os Haroldos, os Salgados, os Saramagos (4)... Trata-se de ressaltar a força que ganha uma literatura erguida pelas mãos e mentes daqueles que estão imersos no próprio tema – material e espiritual – escolhido. Somente uma produção poética assim, viva, agregadora de particularidades e construtora de propósitos, edificada à revelia do oficialismo, e contra ele, será capaz de fazer frente à pasteurização cultural do Planeta, espanar a poeira do arcaísmo pós-moderno, refundar a modernidade e plasmar uma universalidade capaz de conviver, respeitar, apreciar e alimentar-se das singularidades e diversidades.

 

 

1 Sávio Bones é Diretor do Instituto ProJeto, membro do Coletivo de Sócios da Revista Práxis e do Conselho Editorial do Correio da Cidadania. Integra o Coletivo da Secretaria Agrária Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT) e o corpo de assessoramento da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Setor Mineral. Técnico de Estradas. Foi dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) – seção Metropolitana de Belo Horizonte – e membro das comissões executivas do PT de Belo Horizonte, do Diretório Estadual de Minas Gerais e do Diretório Nacional.

2 Gramsci, Antônio. Cadernos de Cárcere. Volume 2. Caderno 12 – Apontamentos e Notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. Edição de Carlos Nelson Coutinho com Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2000, p. 15.

3 Nota do editor: Deus e o diabo na terra do sol, filme de Glauber Rocha (1964), é um clássico do Cinema Novo Brasileiro. No Nordeste brasileiro, cenário de violentas e historicamente arraigadas tensões em torno da terra, são representadas as esperanças de um casal de camponeses, Manuel e Rosa, e suas ligações com duas formas de contestação do poder religioso e econômico, o messianismo e o banditismo social, mais especificamente, o cangaço. O messianismo, por liberar o campesinato da dominação, constitui uma preocupação para os grandes proprietários de terra e para a igreja católica. Numa das cenas marcantes do filme, os camponeses, unidos pela força do messianismo no Monte Santo, são massacrados pelos poderes estabelecidos, sendo Rosa e Manuel os sobreviventes que relatam a história e aderem ao cangaço.

4 Nota do editor: O autor se refere aqui a artistas que, através de suas obras, hipotecaram sua solidariedade aos Sem Terra. Muitas dessas expressões se encontram neste website, no arquivo Depoimentos de Intelectuais e Artistas Brasileiros em Apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Data:

novembro de 2002

Recurso ID:

WITHHAND546

		À Universidade da página bem-vinda de Nottingham

Vozes Sem Terra, site hospedado pela
School of Languages, Linguistics and Film
Queen Mary University Of London, Grã-Bretanha

Coordenadora do Projeto e Organizadora do Arquivo: Else R P Vieira
Produtor do Web site: John Walsh
Arquivo criado em janeiro de 2003
Última atualização: 07 / 05 / 2016

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