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As Imagens e as Vozes da Despossessão: A Luta pela Terra e a Cultura Emergente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)

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Português (change language to English)

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Estudos, depoimentos & referências -> Ensaios 9 recursos (Editado por Else R P Vieira. Tradução © Thomas Burns.)

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Autor:

José Carlos Sebe Bom Meihy

Título:

Escutar as vozes da marcha

Este é nosso País

essa é nossa bandeira

é por amor a esta Pátria-Brasil

que a gente segue em fileira.

Queremos mais felicidade

no céu deste olhar cor de anil

No verde esperança sem Fogo

bandeira que o povo assumiu.

Amarelo são os campos floridos

as faces agora rosadas

Se o branco da paz irradia

vitória das mãos calejadas.

Queremos que abrace esta terra

por ela quem sente paixão

quem põe com carinho a semente

pra alimentar a Nação,

A ordem é ninguém passar fome

Progresso é o povo feliz

A reforma agrária é a volta

do agricultor à raiz.

Zé Pinto, "Ordem e progresso".

CD Arte em movimento - MST, 1998.

Sendo legítimo que as histórias dos trabalhadores sem-terra se dizem por si, sem a necessidade de explicações complementares, vale assinalar o que segue como um esforço mais atento a ouvir e compreender que a explicar. Renunciamos, de partida, a diagnósticos sociológicos, prescrições economicistas e recomendações apoiadas em direitos amorais. Até porque seria equivocado supor que os narradores sem-terra não tivessem potência e autonomias capazes de projetar a própria lógica vivencial. Situamos, portanto, no nível da ética a problemática das costumeiras "análises". De igual maneira, pretendemos valorizar as experiências contadas no que elas têm de mais concreto: sua capacidade de expressão e de transformação.

Pretendemos, ademais, reconhecer o mérito de quem, impondo-se, grita por condições sociais e humanas. Se fazemos esta reflexão, é para organizar a recepção das mensagens por grupos despreparados para ouvi-las. Aceitá-los enquanto indicadores de mudanças substanciais e facilitar sua integração na ordem política passa a ser eco de compromissos que se complementam. É sob essas condições que alguns intelectuais exercitam-se como reconhecedores de trabalhos efetuados em favor de uma cultura militante.

Este texto, portanto, foi preparado para os consumidores de livros e de propostas que verticalizem suas perguntas na terra cavada pelas experiências dos pobres, no caso específico dos trabalhadores sem terra. Sobretudo, assinalamos a importância da demarcação de um outro território: o da narrativa de pessoas empenhadas na justiça social, que não tem brotado no solo da cidadania brasileira.

Registrar histórias de vida é mais que colher depoimentos. Deixar florescer a reflexão sobre o sentido de uma existência – e nela a luta por causas essenciais – implica posturas valentes. Reconhecer o esforço de quem quer trabalhar e que, para tanto, luta desprendidamente, comprometendo muitas vezes a própria família e até a vida, passa a ser papel de uma história do tempo presente. A cultura acadêmica tradicional, em claro contraste, refuta posições que, a seu ver, se simplificam na opção de "dar vozes aos vencidos". Exercícios eloqüentes de alienação perturbam o desenvolvimento do processo como um todo e fazem com que a teorização conspire contra o progresso do saber e da melhoria social. A cultura tradicional se porta de maneira a matar o sentido social dos trabalhos acadêmicos.

A moderna história oral – área de estudos que cuida de proceder documentos inéditos e propor seu sentido social junto aos registros de um tempo – não aceita o papel de "porta-voz qualificada". 0 que se faz necessário é revelar, para os interessados em mudanças, que os narradores não são tratados como "objeto de pesquisa". Agora aquilatados como "colaboradores", são prioritariamente os agentes e nós os trabalhadores que, no máximo, transformamos em escrita as suas vozes. Não aceitamos mais a distância e a "coisificação" de temas que implicavam neutralidade. Pelo contrário, a qualificação de "colaborador" exige uma postura dialética que costura linhas diferentes em um só tecido. O que se emenda é um trabalho capaz de dar roupa nova para uma sociedade.

Com propósitos afinados, com direitos medidos e negociados democraticamente, as histórias pessoais merecem ser respeitadas em sua "integralidade" e não em frações ajuizadas por outros. Isso é muito e, paradoxalmente, é pouco. Muito se registrado o parâmetro tradicional que dá a última palavra ao analista, percebendo o objeto de pesquisa como um produto estranho. Pouco, se marcado o sentido da luta de trabalhadores que escrevem sua história agressivamente, exigindo que os procedimentos intelectuais, acadêmicos e cultos de um grupo aprendam a ver no "outro" também condições de saberes próprios e respeitáveis.

Criticamos, pois, os critérios de julgamento feitos por uma parte sem a concorrência da outra, tornada "objeto de pesquisa". Assim, prezamos a justiça em busca de um mundo não desigual, onde o papel do intelectual é menos de autoproteção e mais de reconhecimento de condições de mudanças. Nesta alternativa, aliás, se dá a ritualização entre o trabalho daqueles e o labor dos acadêmicos que apenas traduzem um processo para os códigos do poder. É claro que há nisso um nítido compromisso social. Falamos de política intelectual.

A postura que pretendemos como bússola desta reflexão busca garantir totalidade narrativa e essência de conteúdos revelados às experiências registradas. Outra etapa, eventualmente apresentada, é a verificação de temas decorrentes que se mostram oportunos para o debate social coletivo e político. Assumimos as histórias, abdicando o parcelamento aleatório dos conteúdos em particular porque isso costuma ocorrer sem a participação dos depoentes, exibindo uma opinião autoritária. Os então denominados especialistas, acadêmicos ou intelectuais que espelham as causas próprias, elidem parte substantiva do trabalho narrativo dos depoentes e passam, eles, a resolver quais os assuntos a ser focalizados. Esta se mostra, para os oralistas uma postura perversa, que implica apropriação de histórias e de causas que não são suas. Metaforicamente, de maneira invertida, o que se vê nesse caso é uma prática de saque do território alheio como se fosse patrimônio herdado pelos donos dos saberes constituídos.

Nosso compromisso é dar contexto às histórias de vida dos trabalhadores sem terra, reconhecendo que para isso elas têm de existir em sua plenitude. Curiosamente, é por meio da escrita que essas possibilidades se realizam, e isso, como se sabe, também é paradoxal, pois a escrita, em geral, tem sido um mecanismo de segregação que galga poderes de exclusão social dos não-alfabetizados ou pouco reconhecidos na ordem escolar estabelecida.

É lógico que, protestando em favor dos registros das histórias integrais, não se trata de zelar por purismos absolutos. Não. Temos perfeitamente estabelecido que as falas – dos narradores e as nossas – estão localizadas em patamares diferentes, mas é exatamente a partir disso que se postula, primeiro, a validade da história completa, para depois sugerir destaques que se afiguram relevantes para a aceitação de debates convenientes. Sem esse reconhecimento fica difícil supor os dilemas firmados em princípios morais que ainda buscam a dimensão dos valores propugnados como sociais: de liberdade, de igualdade e, principalmente, de solidariedade.

Não se trata de mera mediação. O que pretendemos é dar alguns destaques que provocam a interlocução entre partes que certamente se estranham, mas que se preocupam e se sensibilizam, buscando conviver com a diferença. A democracia, perguntamos com ênfase, não se constrói exatamente nos alinhamentos entre dessemelhantes? E para isso não é preciso ter claro os elementos de distinção? E que responsabilidade pode ser maior do que dar condições de diálogos? Suas histórias, em conjunto e integrais, não constituem matéria básica para explicações? Com que direito fragmentá-las? Com a mesma arrogância que costumam empregar para defini-los sem direito a posse nenhuma?

A operação intelectual é sempre complicada ao se abordar a questão do entendimento do "outro". Não sem razão, um dos temas mais eloqüentes das chamadas ciências humanas contemporâneas é a questão da "alteridade". Vislumbrando na qualificação da identidade alheia a alternativa de discutir a própria, o que salta aos olhos é o individualismo e sua descartabilidade dos compromissos coletivos. Corno se fosse verdade que os pressupostos da pós-modernidade garantissem aos intelectuais o direito de não mais se integrarem nos projetos sociais. Parece que, grosso modo, vivemos numa redoma onde os problemas são sempre os causados pelos "outros" e que a nós é dado viver nossa vida sem preocupações com o que, conformada e confortavelmente, não mais pode ser mudado.

Estes, relegando à história o papel de depósito de registros das falências dos grandes projetos – dos quais o socialismo seria uni deles –, ficam inventariando para as gerações futuras a noção de debilidade da política. Incapaz de desempenhar seu papel, a política seria equiparada a uma espécie de esquizofrenia de gerações sonhadoras. É, aliás, nessa linha que emerge o conceito de utopia. E, o que é pior, utopia passa a ser atestado de sonho não realizado no tempo passado. Como se fosse vão projetar utopias de futuro, pois o passado devoraria as esperanças.

Curiosamente, desmentindo esse enredo, com força brutal emergem alguns movimentos que perturbam a comodidade do propalado pós-modernismo. O motor que impulsiona tais investidas parte de uma ação básica da luta pela sobrevivência em seu grau mais vital – e provoca reações que abalam todo o sistema social. 0 corpo coletivo se vê afetado, às vezes agredido, porque, quando reconhece o outro, o vê como usurpador de direitos que se fizeram consagrados em um esquema excludente. De maneira evidente, o que se fixa então é uma prática em que, as fronteiras entre os "eus" e os "outros"prescrevem uma "alteridade" egoísta e desumanizada. Onde o direito é regra de quem o fez e, para quem o consome por meio do poder instituído historicamente, resta mesmo reconhecer a própria história e desprezar a dos demais. Por isso é fundamental conhecer as histórias pessoais, as trajetórias, os dramas, as alegrias e as contradições dos narradores. Foi com esse objetivo que este trabalho se construiu.

*

As entrevistas feitas com os participantes da Marcha até Brasília documentaram um encontro fantástico entre o poder constituído e o constituinte. Como não registrar isso? Aliás, seria melhor perguntar: como registrar? A opção desenhada pelos membros do Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHO/USP) foi colher as histórias pessoais. Histórias de vida que se assumiram coletivas na materialização de um projeto social relevante que implica seus adeptos e não-adeptos.

A situação, bem sabemos, era especial. Tratava-se de um momento na experiência da comunidade e de seus indivíduos, mas de maneira nenhuma aceitamos a especificidade daquela circunstância como inversão do cotidiano. Pelo contrário, o que prezamos é a qualidade daquele instante como coroamento de um processo. Neste "carnaval" cívico, deram-se as oportunidades de se afinar códigos políticos materializados em causas coletivas.

Das histórias colhidas, alguns elementos destacam temas preferidos pelos narradores. É exatamente pela ênfase dada por eles a algumas questões que reconhecemos que nelas estão contidas mensagens. Entre tantos assuntos, a questão fundamental apresentada diz respeito ao contorno conferido ao próprio grupo. A identidade do Movimento pode ser pensada em nível do tratamento dado a diversas situações. Tendo claro que os conceitos de democracia e de direito são a estrada pela qual trafega a luta, as questões individuais se apresentam como coletivas.

Na marcha, estiveram presentes pessoas de diversos estados da federação e cada um deles certamente apresenta problemáticas específicas. Como se constroem as afinidades e como se mantém a assimetria individual? Podemos imaginar uma comunidade de destino ao examinar, por exemplo, a forma como os pronomes "eu" e "nós" são empregados pelos entrevistados.

Todas as entrevistas são emblemáticas nesse sentido, na medida em que muitas vezes o "eu" se funde ao "nós" e se transforma num eterno "a gente". O "a gente" ganha inúmeros significados no discurso dessas pessoas, pois refere-se à junção de "eu" com os "outros", ou seja, à coletividade. As pessoas, como parte dessa militância coletiva, compartilham a mesma identidade. Assim, refletem a comunhão, o estar juntos em um ambiente solidário, no qual se celebra e se forja a identidade coletiva.

A religiosidade também fundamenta essa identidade coletiva. Ela é resultado da atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), norteada pela Teologia da Libertação, no próprio cotidiano do MST, desde seu surgimento. Pela religiosidade passa a justificativa de lutar, como nas entrevistas de Marlene, Jonas e Ojefferson, que evocam a idéia da Terra criada por Deus para todos, onde seus discípulos lutam pela terra prometida desde os tempos bíblicos.

É também pela posição política dos religiosos diante da luta pela terra – de apoio ou não – que verificamos em que medida os colaboradores cobram o exercício de uma crença libertadora. Pensamos aqui no exemplo de Maria José, quando enfrenta o padre de sua cidade e pensa em retirá-lo de lá para que possa ao menos freqüentar a igreja. Ou no caso de Dirce, ao aderir a uma greve de fome de religiosos em apoio ao Movimento chegando até a usar uma aliança como símbolo do pacto.

Esse sentimento de Comunhão se funde na prática da "mística", uma celebração que realizam antes e depois de cada ato, cada reunião, materiaIizando o significado das lutas por meio da simbologia religiosa, que se torna política. A apropriação simbólica permite que as pessoas mantenham sempre seu estado de comunhão, convencendo-se da necessidade da luta no dia-a-dia, num aprendizado de novos valores que passa a ser ritualizado.

Essa ritualização religiosa abrange todo tipo de manifestação política, como fica evidente na própria fala de Benedito sobre a Marcha Nacional, comparando-a à busca de Moisés pela terra prometida, à frente do povo hebreu, e à via crucis de Jesus Cristo.

A mística cria novos heróis, diferentes dos já sagrados pela história oficial. Esses heróis são os próprios participantes do MST, como os colaboradores deste livro, que também reinventam a história elegendo nomes com um passado de lutas populares. Che Guevara, Chico Mendes, Antônio Conselheiro mesclam-se com a lembrança dos índios que resistiram à colonização, assim como dos trabalhadores rurais e religiosos assassinados na luta pela terra.

Zumbi dos Palmares é um dos que mais está presente nas narrativas, levando-nos a refletir sobre a dimensão dada ao problema étnico no Movimento. Seria equivocado supor que a pobreza nivela a todos. Pelo contrário, quando se encontra uma variação de tipos, de situações de origem étnica e de procedência regional, pode-se perceber a solidez da solda que une os membros do MST. Neste sentido, cabe destacar o papel dos negros nesta comunidade.

É lógico que o exame breve é complicado. Percebemos, entretanto, que o cenário democrático da causa da reforma agrária, construído pelo movimento social, abriga e dá voz a especificidades claras. Em face disso, observamos que os negros no MST talvez não tenham um papel tão recortado dos demais, como propõem os movimentos sociais de cunho étnico. A maneira de enfrentar o preconceito e a desigualdade parece estar mais relacionada à prática de alçá-los à condição de cidadãos brasileiros – inclusive como grandes heróis –, inserindo as causas historicamente qualificadoras da problemática do negro no âmbito da luta geral.

Descendentes de ex-escravos, ligados muitas vezes a atividades rurais, não estariam os negros tentando se juntar aos demais para também promover uma renovação de seu papel na história? A recorrência de nomes como Zumbi e Ganga Zumba não seria sintoma disso? O exame de alguns depoimentos pode iluminar essa questão, como nas entrevistas de Marquinhos, Ojefférson e Mazinho.

As mulheres formam outro importante grupo de reivindicações específicas, pois ocupam posições fundamentais na luta do Movimento. Suas posturas em face das atuações merecem cuidados, pois elas, entre tantas atividades, acumulam a responsabilidade de ser chefes de família. Ao mesmo tempo, sua condição de mulher não se anula. Elas cumprem papéis específicos no coletivo, mas também se exercitam em funções familiares.

Não seria necessário grande esforço para se imaginar que a mulher no Movimento acaba se diferenciando do padrão feminino burguês e da família constituída em moldes tradicionais. No processo da luta pela terra elas vão tomando consciência das relações de gêneros estabelecidas na sociedade, procurando renová-las em outras condições de maior igualdade. Nesse sentido, vale considerar as especificidades da vida de Dirce, que conta as dificuldades de ser uma liderança feminina, de Lúcia, que destaca a questão da família; de Marlene, que é cabeça de família; de Maria José, que evoca uma emancipação política da mulher de Cristiane, que se liberta e ganha voz ativa no movimento, com a condescendência dos pais...

Em contrapartida, se falamos do feminino não podemos esquecer do masculino. 0 sentido de uma masculinidade ainda eivada das características de uma sociedade patriarcal burguesa choca-se com os novos problemas propostos pela partilha de atividades com as mulheres. 0 primeiro exemplo entre tantos é Ojefferson que diz ser filho único por ser o único homem da família, ressaltando a importância de ser homem e as responsabilidades que isso acarreta. Contraditoriamente, é sua mãe, uma mulher forte e corajosa, que ingressa no MST e o arrasta para a militância. Aqui também é nítida a transformação que o dia-a-dia dentro do Movimento traz na consciência das pessoas. Podemos senti-la na história de vida de Zenir e Valdecir, em que uma masculinidade mais solidária e responsável se desenha, na medida em que apresentam suas intenções em constituir família mais tarde, quando tiverem uma situação de vida estável. Fica, sobretudo, o desejo de que possam compartilhar com suas mulheres o cotidiano doméstico, assumindo novos papéis na estrutura familiar.

A família por sua vez, está presente todo o tempo nessas entrevistas. É interessante destacar, todavia, a freqüência com que os conflitos entre pais, filhos e irmãos surgem a partir da entrada de uns ou de outros no Movimento. Irmãos de famílias numerosas que ingressam no Movimento e levam consigo os outros. Filhos que se envergonham de seus pais por serem do MST e, posteriormente, acabam ingressando também na luta. Filhos que tomam a frente, muitas vezes puxando a família ou criando uma situação de confronto com pais discordantes. Pais, filhos e irmãos que lutam juntos mas pensam de maneiras diversas sobre os caminhos que devem ser trilhados. E pais que educam e apóiam os filhos dentro do Movimento.

Marlene encontra na família a força para continuar lutando, e, para proporcionar-lhe uma vida melhor, adia a realização do sonho de continuar seus estudos. João fala com orgulho de suas filhas que o acompanham na Marcha. Como ele, são muitos os que relatam o encontro de uma companheira ou companheiro de luta e de vida no Movimento, constituindo novas famílias.

Decorrente disso, surge outro ponto que merece atenção. Muitas dessas famílias – como as de Jonas, Lúcia, Rosineide João e Ojefferson – foram organizadas ou reorganizadas após a entrada no MST. Ou seja, a entrada no Movimento impõe novo ritmo à vida das pessoas e comprometimentos outros que ultrapassam a relação homem-mulher, não se restringindo à luta política. Seguem juntos ideais e companheirismo. A saída de uma antiga estrutura familiar patriarcal é favorecida, bem como sua (re)construção em outros moldes.

Talvez por isso a família seja a base do desenvolvimento de justiça social proposto pelo MST. A agricultura familiar ganha espaço dando trabalho a seus membros e não dispensando o desenvolvimento tecnológico nas cooperativas. 0 trabalho – coletivo de preferência – é a base para uma nova educação social e política, para o exercício ela cidadania e para à revalorização da cultura camponesa.

Assim, a educação técnica e a teórica estão aliadas numa proposta metodológica amplamente fundamentada e praticada com afinco dentro do Movimento. Ela é aplicada desde à educação básica, nos próprios acampamentos e assentamentos, até o ensino técnico em escolas como o Iterra em Veranópolis, Rio Grande do Sul.

A educação é uma das características mais relevantes do Movimento. Por outro lado, dando-se em circunstâncias especiais, ela revela um sentido ideológico de indisfarçável comprometimento, inspirada em nomes como Paulo Freire, Vygotsky, Emília Ferreiro, Makarenko José Martí, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro Marx e Lênin. Neste sentido, é conveniente que se perceba por meio dos depoimentos como se materializam essas escolas e quais são seus conteúdos básicos.

Os sem-terra rompem com uma longa tradição pedagógica que desassocia a prática educacional da prática política. Articulam um projeto original, cultivado a cada dia, que estimula constantemente que se questione a favor de quem e do que está se ensinando. Tal atividade é realizada muitas vezes por profissionais e por pessoas engajadas que pensam a democracia não como um dado mas como algo a se conquistar. Essa é a escola dos sonhos de Antônio, Rosineide, Dirce, Marlene, Maria José, e é nela que crianças como Cristiane aprendem a lutar.

Pensamos que esse aprendizado traz muitos pontos positivos. Entretanto, preocupamo-nos com sua assimilação por vezes dogmática, por exemplo no caso do ensino de história, em que apenas nomes, fatos e velhos mitos seriam substituídos sem uma forma reflexiva tão revolucionária quanto o conteúdo apresentado. Talvez a organização do MST ainda não tenha conquistado condições materiais e humanas para realizar plenamente a sua proposta. No entanto, isso de forma alguma invalida os resultados já obtidos, em termos de estabelecimento da cidadania de pessoas antes completamente excluídas, como nos atestam os vários narradores que escutamos.

Por meio das narrativas, descobrimos que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, mais que propor novos valores – diferentes dos comumente estabelecidos – para uma transformação social profunda em nosso país, já os executa na prática. Uma prática permeada de conquistas, mas também de problemas a equacionar. Seus participantes sabem de tudo isso. E lutam todos os dias contra os nossos problemas sociais e os que ainda prevalecem e influenciam seu cotidiano. Dialeticamente se renovam e também aos que estão abertos para ouvir suas experiências e aprender com suas lições.

Sobre a construção de uma sociedade com novos valores escreveram:

A VEZ DOS VALORES

A todos os militantes que plantam diariamente,
através do esperança, um novo amanhecer.

Talvez a frase que mais nos chamou a atenção no ano de 1997 foi essa "Duas coisas são eternas: o tempo e o povo". Poderíamos buscar outras coisas que são eternas mas estas duas já nos bastam para nossa reflexão. Por que esta frase nos chama tanto a atenção? Com certeza pela lógica da continuidade da vida. Viveremos eternamente através do tempo e do povo.

Sendo assim, não nos pertencemos individualmente Somos a projeção histórica de nossos antepassados. Carregamos não apenas os traços físicos de nossos pais e avós. Mas também sonhos e esperanças que eles formularam e incutiram em cada consciência, pois sabiam que através de nós continuariam vivos. Eis por que se empenharam em moldar nossa conduta.

Cabe a nós, neste momento definir "em que futuro" viverão nossos descendentes. Eles serão nossos continuadores.

No final do século e do segundo milênio, a história nos responsabilizou a não falarmos em nome próprio mas em nome de uma organização, o MST.

Nos tornamos fortes em parte pela nossa capacidade de simplificarmos as impossibilidades, tornando-as reais. Mas também pelas virtudes que conseguimos desenvolver. Estas atingiram a profundeza do imaginário da sociedade. Os ricos temem mais nossas virtudes que nossa força orgânica. Pois estas movem consciências e corações para plantar utopias no cenário social.

Nada pode ser mais perigoso do que algo que se move por conta própria. Pois foge do controle e da repressão dos poderosos.

A força do exemplo se torna não somente admiração, mas referência. E se materializa em virtudes que se reproduzem para todos os séculos. Para estas virtudes, que se conformam em valores, é que devemos dar atenção nos próximos anos. Elas determinarão como será o futuro que pretendemos entregar aos nossos descendentes. Quais são alguns destes valores?

E seguem dizendo que esses valores são o cultivo da solidariedade e da beleza como símbolo do bem-estar; a valorização da vida o gosto pelos símbolos como representações materiais das utopias; a capacidade de dar respostas simples para grandes problemas; o respeito aos sentimentos das pessoas e à história; o gosto de ser povo ressaltando uma idéia de nação – a defesa do trabalho e do estudo e, por fim a capacidade de indignar-se como exercício de educação da consciência.

Por serem assim, essencialmente revolucionários, o poder estabelecido procura isolá-los, estigmatizá-los, distanciá-los de nós. Eles apenas fazem parte caricatamente da realidade criada pela mídia, que nos faz sonhar com a sociedade de consumo, individualista e competitiva, disfarçando sua face desigual e preconceituosa, desagregadora e violenta.

Como antídoto, eles nos oferecem a religiosidade libertária, ao invés daquela que oprime e domestica. A participação da mulher, do homem e das etnias na condução dos ritmos da sociedade em termos igualitários, ao avesso da marginalização e opressão entre grupos. A constituição da família sobre bases mais democráticas, contrariamente à sua destruição ou existência em moldes patriarcais. 0 trabalho coletivo e social, em oposição ao desemprego e à competitividade capitalista. A educação consciente, politizada e contextualizada, em contraposição à alienante ou inexistente. Por fim, a solidariedade, em contrapartida ao individualismo.

Na justaposição de dois projetos antagônicos de sociedade – em que o do MST se apresenta com matizes claramente socialistas –, encontramos com os sem-terra o sentido de uma nova Pátria-Brasil. Nossa Nação finalmente é reapropriada – pelos que dela foram excluídos – no cotidiano dos acampamentos, dos assentamentos, das manifestações e, especialmente, das marchas, como a Marcha Nacional de 1997. Nessa ocasião, os sem-terra fizeram questão de divulgar, mais uma vez por meio da música, que lêem as palavras escritas em nossa bandeira sob outra ótica: a ordem é ninguém passar fome e o progresso é o povo feliz.

Data:

novembro de 2002

Recurso ID:

LISTENIN691

		À Universidade da página bem-vinda de Nottingham

Vozes Sem Terra, site hospedado pela
School of Languages, Linguistics and Film
Queen Mary University Of London, Grã-Bretanha

Coordenadora do Projeto e Organizadora do Arquivo: Else R P Vieira
Produtor do Web site: John Walsh
Arquivo criado em janeiro de 2003
Última atualização: 07 / 05 / 2016

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