Este é nosso País
essa é nossa bandeira
é por amor a esta Pátria-Brasil
que a gente segue em fileira.
Queremos mais felicidade
no céu deste olhar cor de anil
No verde esperança sem Fogo
bandeira que o povo assumiu.
Amarelo são os campos floridos
as faces agora rosadas
Se o branco da paz irradia
vitória das mãos calejadas.
Queremos que abrace esta terra
por ela quem sente paixão
quem põe com carinho a semente
pra alimentar a Nação,
A ordem é ninguém passar fome
Progresso é o povo feliz
A reforma agrária é a volta
do agricultor à raiz.
Zé Pinto, "Ordem e progresso".
CD Arte em movimento - MST, 1998.
Sendo legítimo que as histórias dos trabalhadores sem-terra se
dizem por si, sem a necessidade de explicações complementares,
vale assinalar o que segue como um esforço mais atento a ouvir e compreender
que a explicar. Renunciamos, de partida, a diagnósticos sociológicos,
prescrições economicistas e recomendações apoiadas
em direitos amorais. Até porque seria equivocado supor que os narradores
sem-terra não tivessem potência e autonomias capazes de projetar
a própria lógica vivencial. Situamos, portanto, no nível
da ética a problemática das costumeiras "análises".
De igual maneira, pretendemos valorizar as experiências contadas no que
elas têm de mais concreto: sua capacidade de expressão e de transformação.
Pretendemos, ademais, reconhecer o mérito de quem, impondo-se, grita
por condições sociais e humanas. Se fazemos esta reflexão,
é para organizar a recepção das mensagens por grupos despreparados
para ouvi-las. Aceitá-los enquanto indicadores de mudanças substanciais
e facilitar sua integração na ordem política passa a ser
eco de compromissos que se complementam. É sob essas condições
que alguns intelectuais exercitam-se como reconhecedores de trabalhos efetuados
em favor de uma cultura militante.
Este texto, portanto, foi preparado para os consumidores de livros e de propostas
que verticalizem suas perguntas na terra cavada pelas experiências dos
pobres, no caso específico dos trabalhadores sem terra. Sobretudo, assinalamos
a importância da demarcação de um outro território:
o da narrativa de pessoas empenhadas na justiça social, que não
tem brotado no solo da cidadania brasileira.
Registrar histórias de vida é mais que colher depoimentos. Deixar
florescer a reflexão sobre o sentido de uma existência e
nela a luta por causas essenciais implica posturas valentes. Reconhecer
o esforço de quem quer trabalhar e que, para tanto, luta desprendidamente,
comprometendo muitas vezes a própria família e até a vida,
passa a ser papel de uma história do tempo presente. A cultura acadêmica
tradicional, em claro contraste, refuta posições que, a seu ver,
se simplificam na opção de "dar vozes aos vencidos".
Exercícios eloqüentes de alienação perturbam o desenvolvimento
do processo como um todo e fazem com que a teorização conspire
contra o progresso do saber e da melhoria social. A cultura tradicional se porta
de maneira a matar o sentido social dos trabalhos acadêmicos.
A moderna história oral área de estudos que cuida de proceder
documentos inéditos e propor seu sentido social junto aos registros de
um tempo não aceita o papel de "porta-voz qualificada".
0 que se faz necessário é revelar, para os interessados em mudanças,
que os narradores não são tratados como "objeto de pesquisa".
Agora aquilatados como "colaboradores", são prioritariamente
os agentes e nós os trabalhadores que, no máximo, transformamos
em escrita as suas vozes. Não aceitamos mais a distância e a "coisificação"
de temas que implicavam neutralidade. Pelo contrário, a qualificação
de "colaborador" exige uma postura dialética que costura linhas
diferentes em um só tecido. O que se emenda é um trabalho capaz
de dar roupa nova para uma sociedade.
Com propósitos afinados, com direitos medidos e negociados democraticamente,
as histórias pessoais merecem ser respeitadas em sua "integralidade"
e não em frações ajuizadas por outros. Isso é muito
e, paradoxalmente, é pouco. Muito se registrado o parâmetro tradicional
que dá a última palavra ao analista, percebendo o objeto de pesquisa
como um produto estranho. Pouco, se marcado o sentido da luta de trabalhadores
que escrevem sua história agressivamente, exigindo que os procedimentos
intelectuais, acadêmicos e cultos de um grupo aprendam a ver no "outro"
também condições de saberes próprios e respeitáveis.
Criticamos, pois, os critérios de julgamento feitos por uma parte sem
a concorrência da outra, tornada "objeto de pesquisa". Assim,
prezamos a justiça em busca de um mundo não desigual, onde o papel
do intelectual é menos de autoproteção e mais de reconhecimento
de condições de mudanças. Nesta alternativa, aliás,
se dá a ritualização entre o trabalho daqueles e o labor
dos acadêmicos que apenas traduzem um processo para os códigos
do poder. É claro que há nisso um nítido compromisso social.
Falamos de política intelectual.
A postura que pretendemos como bússola desta reflexão busca garantir
totalidade narrativa e essência de conteúdos revelados às
experiências registradas. Outra etapa, eventualmente apresentada, é
a verificação de temas decorrentes que se mostram oportunos para
o debate social coletivo e político. Assumimos as histórias, abdicando
o parcelamento aleatório dos conteúdos em particular porque isso
costuma ocorrer sem a participação dos depoentes, exibindo uma
opinião autoritária. Os então denominados especialistas,
acadêmicos ou intelectuais que espelham as causas próprias, elidem
parte substantiva do trabalho narrativo dos depoentes e passam, eles, a resolver
quais os assuntos a ser focalizados. Esta se mostra, para os oralistas uma postura
perversa, que implica apropriação de histórias e de causas
que não são suas. Metaforicamente, de maneira invertida, o que
se vê nesse caso é uma prática de saque do território
alheio como se fosse patrimônio herdado pelos donos dos saberes constituídos.
Nosso compromisso é dar contexto às histórias de vida
dos trabalhadores sem terra, reconhecendo que para isso elas têm de existir
em sua plenitude. Curiosamente, é por meio da escrita que essas possibilidades
se realizam, e isso, como se sabe, também é paradoxal, pois a
escrita, em geral, tem sido um mecanismo de segregação que galga
poderes de exclusão social dos não-alfabetizados ou pouco reconhecidos
na ordem escolar estabelecida.
É lógico que, protestando em favor dos registros das histórias
integrais, não se trata de zelar por purismos absolutos. Não.
Temos perfeitamente estabelecido que as falas dos narradores e as nossas
estão localizadas em patamares diferentes, mas é exatamente
a partir disso que se postula, primeiro, a validade da história completa,
para depois sugerir destaques que se afiguram relevantes para a aceitação
de debates convenientes. Sem esse reconhecimento fica difícil supor os
dilemas firmados em princípios morais que ainda buscam a dimensão
dos valores propugnados como sociais: de liberdade, de igualdade e, principalmente,
de solidariedade.
Não se trata de mera mediação. O que pretendemos é
dar alguns destaques que provocam a interlocução entre partes
que certamente se estranham, mas que se preocupam e se sensibilizam, buscando
conviver com a diferença. A democracia, perguntamos com ênfase,
não se constrói exatamente nos alinhamentos entre dessemelhantes?
E para isso não é preciso ter claro os elementos de distinção?
E que responsabilidade pode ser maior do que dar condições de
diálogos? Suas histórias, em conjunto e integrais, não
constituem matéria básica para explicações? Com
que direito fragmentá-las? Com a mesma arrogância que costumam
empregar para defini-los sem direito a posse nenhuma?
A operação intelectual é sempre complicada ao se abordar
a questão do entendimento do "outro". Não sem razão,
um dos temas mais eloqüentes das chamadas ciências humanas contemporâneas
é a questão da "alteridade". Vislumbrando na qualificação
da identidade alheia a alternativa de discutir a própria, o que salta
aos olhos é o individualismo e sua descartabilidade dos compromissos
coletivos. Corno se fosse verdade que os pressupostos da pós-modernidade
garantissem aos intelectuais o direito de não mais se integrarem nos
projetos sociais. Parece que, grosso modo, vivemos numa redoma onde os problemas
são sempre os causados pelos "outros" e que a nós é
dado viver nossa vida sem preocupações com o que, conformada e
confortavelmente, não mais pode ser mudado.
Estes, relegando à história o papel de depósito de registros
das falências dos grandes projetos dos quais o socialismo seria
uni deles , ficam inventariando para as gerações futuras
a noção de debilidade da política. Incapaz de desempenhar
seu papel, a política seria equiparada a uma espécie de esquizofrenia
de gerações sonhadoras. É, aliás, nessa linha que
emerge o conceito de utopia. E, o que é pior, utopia passa a ser atestado
de sonho não realizado no tempo passado. Como se fosse vão projetar
utopias de futuro, pois o passado devoraria as esperanças.
Curiosamente, desmentindo esse enredo, com força brutal emergem alguns
movimentos que perturbam a comodidade do propalado pós-modernismo. O
motor que impulsiona tais investidas parte de uma ação básica
da luta pela sobrevivência em seu grau mais vital e provoca reações
que abalam todo o sistema social. 0 corpo coletivo se vê afetado, às
vezes agredido, porque, quando reconhece o outro, o vê como usurpador
de direitos que se fizeram consagrados em um esquema excludente. De maneira
evidente, o que se fixa então é uma prática em que, as
fronteiras entre os "eus" e os "outros"prescrevem uma "alteridade"
egoísta e desumanizada. Onde o direito é regra de quem o fez e,
para quem o consome por meio do poder instituído historicamente, resta
mesmo reconhecer a própria história e desprezar a dos demais.
Por isso é fundamental conhecer as histórias pessoais, as trajetórias,
os dramas, as alegrias e as contradições dos narradores. Foi com
esse objetivo que este trabalho se construiu.
*
As entrevistas feitas com os participantes da Marcha até Brasília
documentaram um encontro fantástico entre o poder constituído
e o constituinte. Como não registrar isso? Aliás, seria melhor
perguntar: como registrar? A opção desenhada pelos membros do
Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São
Paulo (NEHO/USP) foi colher as histórias pessoais. Histórias de
vida que se assumiram coletivas na materialização de um projeto
social relevante que implica seus adeptos e não-adeptos.
A situação, bem sabemos, era especial. Tratava-se de um momento
na experiência da comunidade e de seus indivíduos, mas de maneira
nenhuma aceitamos a especificidade daquela circunstância como inversão
do cotidiano. Pelo contrário, o que prezamos é a qualidade daquele
instante como coroamento de um processo. Neste "carnaval" cívico,
deram-se as oportunidades de se afinar códigos políticos materializados
em causas coletivas.
Das histórias colhidas, alguns elementos destacam temas preferidos pelos
narradores. É exatamente pela ênfase dada por eles a algumas questões
que reconhecemos que nelas estão contidas mensagens. Entre tantos assuntos,
a questão fundamental apresentada diz respeito ao contorno conferido
ao próprio grupo. A identidade do Movimento pode ser pensada em nível
do tratamento dado a diversas situações. Tendo claro que os conceitos
de democracia e de direito são a estrada pela qual trafega a luta, as
questões individuais se apresentam como coletivas.
Na marcha, estiveram presentes pessoas de diversos estados da federação
e cada um deles certamente apresenta problemáticas específicas.
Como se constroem as afinidades e como se mantém a assimetria individual?
Podemos imaginar uma comunidade de destino ao examinar, por exemplo, a forma
como os pronomes "eu" e "nós" são empregados
pelos entrevistados.
Todas as entrevistas são emblemáticas nesse sentido, na medida
em que muitas vezes o "eu" se funde ao "nós" e se
transforma num eterno "a gente". O "a gente" ganha inúmeros
significados no discurso dessas pessoas, pois refere-se à junção
de "eu" com os "outros", ou seja, à coletividade.
As pessoas, como parte dessa militância coletiva, compartilham a mesma
identidade. Assim, refletem a comunhão, o estar juntos em um ambiente
solidário, no qual se celebra e se forja a identidade coletiva.
A religiosidade também fundamenta essa identidade coletiva. Ela é
resultado da atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
norteada pela Teologia da Libertação, no próprio cotidiano
do MST, desde seu surgimento. Pela religiosidade passa a justificativa de lutar,
como nas entrevistas de Marlene, Jonas e Ojefferson, que evocam a idéia
da Terra criada por Deus para todos, onde seus discípulos lutam pela
terra prometida desde os tempos bíblicos.
É também pela posição política dos religiosos
diante da luta pela terra de apoio ou não que verificamos
em que medida os colaboradores cobram o exercício de uma crença
libertadora. Pensamos aqui no exemplo de Maria José, quando enfrenta
o padre de sua cidade e pensa em retirá-lo de lá para que possa
ao menos freqüentar a igreja. Ou no caso de Dirce, ao aderir a uma greve
de fome de religiosos em apoio ao Movimento chegando até a usar uma aliança
como símbolo do pacto.
Esse sentimento de Comunhão se funde na prática da "mística",
uma celebração que realizam antes e depois de cada ato, cada reunião,
materiaIizando o significado das lutas por meio da simbologia religiosa, que
se torna política. A apropriação simbólica permite
que as pessoas mantenham sempre seu estado de comunhão, convencendo-se
da necessidade da luta no dia-a-dia, num aprendizado de novos valores que passa
a ser ritualizado.
Essa ritualização religiosa abrange todo tipo de manifestação
política, como fica evidente na própria fala de Benedito sobre
a Marcha Nacional, comparando-a à busca de Moisés pela terra prometida,
à frente do povo hebreu, e à via crucis de Jesus Cristo.
A mística cria novos heróis, diferentes dos já sagrados
pela história oficial. Esses heróis são os próprios
participantes do MST, como os colaboradores deste livro, que também reinventam
a história elegendo nomes com um passado de lutas populares. Che Guevara,
Chico Mendes, Antônio Conselheiro mesclam-se com a lembrança dos
índios que resistiram à colonização, assim como
dos trabalhadores rurais e religiosos assassinados na luta pela terra.
Zumbi dos Palmares é um dos que mais está presente nas narrativas,
levando-nos a refletir sobre a dimensão dada ao problema étnico
no Movimento. Seria equivocado supor que a pobreza nivela a todos. Pelo contrário,
quando se encontra uma variação de tipos, de situações
de origem étnica e de procedência regional, pode-se perceber a
solidez da solda que une os membros do MST. Neste sentido, cabe destacar o papel
dos negros nesta comunidade.
É lógico que o exame breve é complicado. Percebemos, entretanto,
que o cenário democrático da causa da reforma agrária,
construído pelo movimento social, abriga e dá voz a especificidades
claras. Em face disso, observamos que os negros no MST talvez não tenham
um papel tão recortado dos demais, como propõem os movimentos
sociais de cunho étnico. A maneira de enfrentar o preconceito e a desigualdade
parece estar mais relacionada à prática de alçá-los
à condição de cidadãos brasileiros inclusive
como grandes heróis , inserindo as causas historicamente qualificadoras
da problemática do negro no âmbito da luta geral.
Descendentes de ex-escravos, ligados muitas vezes a atividades rurais, não
estariam os negros tentando se juntar aos demais para também promover
uma renovação de seu papel na história? A recorrência
de nomes como Zumbi e Ganga Zumba não seria sintoma disso? O exame de
alguns depoimentos pode iluminar essa questão, como nas entrevistas de
Marquinhos, Ojefférson e Mazinho.
As mulheres formam outro importante grupo de reivindicações específicas,
pois ocupam posições fundamentais na luta do Movimento. Suas posturas
em face das atuações merecem cuidados, pois elas, entre tantas
atividades, acumulam a responsabilidade de ser chefes de família. Ao
mesmo tempo, sua condição de mulher não se anula. Elas
cumprem papéis específicos no coletivo, mas também se exercitam
em funções familiares.
Não seria necessário grande esforço para se imaginar que
a mulher no Movimento acaba se diferenciando do padrão feminino burguês
e da família constituída em moldes tradicionais. No processo da
luta pela terra elas vão tomando consciência das relações
de gêneros estabelecidas na sociedade, procurando renová-las em
outras condições de maior igualdade. Nesse sentido, vale considerar
as especificidades da vida de Dirce, que conta as dificuldades de ser uma liderança
feminina, de Lúcia, que destaca a questão da família; de
Marlene, que é cabeça de família; de Maria José,
que evoca uma emancipação política da mulher de Cristiane,
que se liberta e ganha voz ativa no movimento, com a condescendência dos
pais...
Em contrapartida, se falamos do feminino não podemos esquecer do masculino.
0 sentido de uma masculinidade ainda eivada das características de uma
sociedade patriarcal burguesa choca-se com os novos problemas propostos pela
partilha de atividades com as mulheres. 0 primeiro exemplo entre tantos é
Ojefferson que diz ser filho único por ser o único homem da família,
ressaltando a importância de ser homem e as responsabilidades que isso
acarreta. Contraditoriamente, é sua mãe, uma mulher forte e corajosa,
que ingressa no MST e o arrasta para a militância. Aqui também
é nítida a transformação que o dia-a-dia dentro
do Movimento traz na consciência das pessoas. Podemos senti-la na história
de vida de Zenir e Valdecir, em que uma masculinidade mais solidária
e responsável se desenha, na medida em que apresentam suas intenções
em constituir família mais tarde, quando tiverem uma situação
de vida estável. Fica, sobretudo, o desejo de que possam compartilhar
com suas mulheres o cotidiano doméstico, assumindo novos papéis
na estrutura familiar.
A família por sua vez, está presente todo o tempo nessas entrevistas.
É interessante destacar, todavia, a freqüência com que os
conflitos entre pais, filhos e irmãos surgem a partir da entrada de uns
ou de outros no Movimento. Irmãos de famílias numerosas que ingressam
no Movimento e levam consigo os outros. Filhos que se envergonham de seus pais
por serem do MST e, posteriormente, acabam ingressando também na luta.
Filhos que tomam a frente, muitas vezes puxando a família ou criando
uma situação de confronto com pais discordantes. Pais, filhos
e irmãos que lutam juntos mas pensam de maneiras diversas sobre os caminhos
que devem ser trilhados. E pais que educam e apóiam os filhos dentro
do Movimento.
Marlene encontra na família a força para continuar lutando, e,
para proporcionar-lhe uma vida melhor, adia a realização do sonho
de continuar seus estudos. João fala com orgulho de suas filhas que o
acompanham na Marcha. Como ele, são muitos os que relatam o encontro
de uma companheira ou companheiro de luta e de vida no Movimento, constituindo
novas famílias.
Decorrente disso, surge outro ponto que merece atenção. Muitas
dessas famílias como as de Jonas, Lúcia, Rosineide João
e Ojefferson foram organizadas ou reorganizadas após a entrada
no MST. Ou seja, a entrada no Movimento impõe novo ritmo à vida
das pessoas e comprometimentos outros que ultrapassam a relação
homem-mulher, não se restringindo à luta política. Seguem
juntos ideais e companheirismo. A saída de uma antiga estrutura familiar
patriarcal é favorecida, bem como sua (re)construção em
outros moldes.
Talvez por isso a família seja a base do desenvolvimento de justiça
social proposto pelo MST. A agricultura familiar ganha espaço dando trabalho
a seus membros e não dispensando o desenvolvimento tecnológico
nas cooperativas. 0 trabalho coletivo de preferência é
a base para uma nova educação social e política, para o
exercício ela cidadania e para à revalorização da
cultura camponesa.
Assim, a educação técnica e a teórica estão
aliadas numa proposta metodológica amplamente fundamentada e praticada
com afinco dentro do Movimento. Ela é aplicada desde à educação
básica, nos próprios acampamentos e assentamentos, até
o ensino técnico em escolas como o Iterra em Veranópolis, Rio
Grande do Sul.
A educação é uma das características mais relevantes
do Movimento. Por outro lado, dando-se em circunstâncias especiais, ela
revela um sentido ideológico de indisfarçável comprometimento,
inspirada em nomes como Paulo Freire, Vygotsky, Emília Ferreiro, Makarenko
José Martí, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro Marx e Lênin.
Neste sentido, é conveniente que se perceba por meio dos depoimentos
como se materializam essas escolas e quais são seus conteúdos
básicos.
Os sem-terra rompem com uma longa tradição pedagógica
que desassocia a prática educacional da prática política.
Articulam um projeto original, cultivado a cada dia, que estimula constantemente
que se questione a favor de quem e do que está se ensinando. Tal atividade
é realizada muitas vezes por profissionais e por pessoas engajadas que
pensam a democracia não como um dado mas como algo a se conquistar. Essa
é a escola dos sonhos de Antônio, Rosineide, Dirce, Marlene, Maria
José, e é nela que crianças como Cristiane aprendem a lutar.
Pensamos que esse aprendizado traz muitos pontos positivos. Entretanto, preocupamo-nos
com sua assimilação por vezes dogmática, por exemplo no
caso do ensino de história, em que apenas nomes, fatos e velhos mitos
seriam substituídos sem uma forma reflexiva tão revolucionária
quanto o conteúdo apresentado. Talvez a organização do
MST ainda não tenha conquistado condições materiais e humanas
para realizar plenamente a sua proposta. No entanto, isso de forma alguma invalida
os resultados já obtidos, em termos de estabelecimento da cidadania de
pessoas antes completamente excluídas, como nos atestam os vários
narradores que escutamos.
Por meio das narrativas, descobrimos que o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra, mais que propor novos valores diferentes dos comumente estabelecidos
para uma transformação social profunda em nosso país,
já os executa na prática. Uma prática permeada de conquistas,
mas também de problemas a equacionar. Seus participantes sabem de tudo
isso. E lutam todos os dias contra os nossos problemas sociais e os que ainda
prevalecem e influenciam seu cotidiano. Dialeticamente se renovam e também
aos que estão abertos para ouvir suas experiências e aprender com
suas lições.
Sobre a construção de uma sociedade com novos valores escreveram:
A VEZ DOS VALORES
A todos os militantes que plantam diariamente,
através do esperança, um novo amanhecer.
Talvez a frase que mais nos chamou a atenção no ano de 1997 foi
essa "Duas coisas são eternas: o tempo e o povo". Poderíamos
buscar outras coisas que são eternas mas estas duas já nos bastam
para nossa reflexão. Por que esta frase nos chama tanto a atenção?
Com certeza pela lógica da continuidade da vida. Viveremos eternamente
através do tempo e do povo.
Sendo assim, não nos pertencemos individualmente Somos a projeção
histórica de nossos antepassados. Carregamos não apenas os traços
físicos de nossos pais e avós. Mas também sonhos e esperanças
que eles formularam e incutiram em cada consciência, pois sabiam que através
de nós continuariam vivos. Eis por que se empenharam em moldar nossa
conduta.
Cabe a nós, neste momento definir "em que futuro" viverão
nossos descendentes. Eles serão nossos continuadores.
No final do século e do segundo milênio, a história nos
responsabilizou a não falarmos em nome próprio mas em nome de
uma organização, o MST.
Nos tornamos fortes em parte pela nossa capacidade de simplificarmos as impossibilidades,
tornando-as reais. Mas também pelas virtudes que conseguimos desenvolver.
Estas atingiram a profundeza do imaginário da sociedade. Os ricos temem
mais nossas virtudes que nossa força orgânica. Pois estas movem
consciências e corações para plantar utopias no cenário
social.
Nada pode ser mais perigoso do que algo que se move por conta própria.
Pois foge do controle e da repressão dos poderosos.
A força do exemplo se torna não somente admiração,
mas referência. E se materializa em virtudes que se reproduzem para todos
os séculos. Para estas virtudes, que se conformam em valores, é
que devemos dar atenção nos próximos anos. Elas determinarão
como será o futuro que pretendemos entregar aos nossos descendentes.
Quais são alguns destes valores?
E seguem dizendo que esses valores são o cultivo da solidariedade e
da beleza como símbolo do bem-estar; a valorização da vida
o gosto pelos símbolos como representações materiais das
utopias; a capacidade de dar respostas simples para grandes problemas; o respeito
aos sentimentos das pessoas e à história; o gosto de ser povo
ressaltando uma idéia de nação a defesa do trabalho
e do estudo e, por fim a capacidade de indignar-se como exercício de
educação da consciência.
Por serem assim, essencialmente revolucionários, o poder estabelecido
procura isolá-los, estigmatizá-los, distanciá-los de nós.
Eles apenas fazem parte caricatamente da realidade criada pela mídia,
que nos faz sonhar com a sociedade de consumo, individualista e competitiva,
disfarçando sua face desigual e preconceituosa, desagregadora e violenta.
Como antídoto, eles nos oferecem a religiosidade libertária,
ao invés daquela que oprime e domestica. A participação
da mulher, do homem e das etnias na condução dos ritmos da sociedade
em termos igualitários, ao avesso da marginalização e opressão
entre grupos. A constituição da família sobre bases mais
democráticas, contrariamente à sua destruição ou
existência em moldes patriarcais. 0 trabalho coletivo e social, em oposição
ao desemprego e à competitividade capitalista. A educação
consciente, politizada e contextualizada, em contraposição à
alienante ou inexistente. Por fim, a solidariedade, em contrapartida ao individualismo.
Na justaposição de dois projetos antagônicos de sociedade
em que o do MST se apresenta com matizes claramente socialistas ,
encontramos com os sem-terra o sentido de uma nova Pátria-Brasil. Nossa
Nação finalmente é reapropriada pelos que dela foram
excluídos no cotidiano dos acampamentos, dos assentamentos, das
manifestações e, especialmente, das marchas, como a Marcha Nacional
de 1997. Nessa ocasião, os sem-terra fizeram questão de divulgar,
mais uma vez por meio da música, que lêem as palavras escritas
em nossa bandeira sob outra ótica: a ordem é ninguém passar
fome e o progresso é o povo feliz.
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