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As Imagens e as Vozes da Despossessão: A Luta pela Terra e a Cultura Emergente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)

Língua:

Português (change language to English)

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Cultura emergente por categorias -> Cultura: O resgate das tradiƧƵes e da cultura do campo 65 recursos (Categorias culturais produzidas por & © Else R P Vieira)

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Este recurso se encontra também em:

Ensaios

Autor:

Ademar Bogo

Título:

A cultura dos Sem Terra

Sem Terra deixa de ser categoria social para tornar-se nome próprio quando identifica um grupo que decidiu ser sujeito para mudar de condição social através da organização política, forjando daí sua própria identidade, com ideologia e valores.

Há uma mistura profunda entre gente, terra e ideologia, na medida em que a caminhada provoca o encontro do ser homem com o ser terra. São dois corpos físicos materiais que possuem características e identidades que agora irão resgatar reciprocamente a história das duas existências.

Embora sejam corpos físicos, é preciso entender que não são apenas matéria. Tanto o homem quanto a terra possuem aspectos que vão além das aparências, isto porque não podemos considerar apenas as coisas visíveis e tocáveis como totalidade das coisas materiais. Nelas e dentro delas, há coisas que podemos tocar e coisas que não podemos tocar, mas existem.

Cada um sabe, com efeito, que na realidade coisas que podemos ver, tocar, medir, são chamadas materiais. Por outro lado, há coisas que não podemos ver, nem tocar, nem medir, mas que, nem por isso, deixam de existir, como nossas idéias, nossos sentimentos, nossos desejos, nossas lembranças, etc.; para exprimir que não são materiais diz-se que são ideais. Dividimos, assim, tudo o que existe, em dois domínios: o material e o ideal. Pode-se também dizer; de maneira dialética, que o real apresenta um aspecto material e um aspecto ideal.(3)

Resta entender qual é a parte visível, que podemos tocar, e qual é a parte invisível da terra que não podemos tocar, mas que podemos sentir e que, por isso mesmo, existe. Assim também devemos proceder com o ser humano.

A terra tem, em sua origem, a energia que se transforma em potencial de ser mãe e gerar a vida de todas as espécies, sem se preocupar com a convivência entre elas, mas oferecendo, com seu sopro, alimento para todas, sem distinção. Se as espécies não compreendem os ciclos da própria existência e se destroem, a culpa não é da terra mas dos desequilíbrios das próprias espécies, por não saberem conviver no mesmo espaço. As que conseguem locomover-se buscam alimentos, retirando-se, andando por sobre a terra, à procura de um espaço diferente. Para as espécies em deslocamento, poderá haver variação de clima, solo e temperatura; para a terra, não. Ela se estende como um imenso tapete colocado dentro da casa do universo, que se compõe de diferentes repartições. Os seres vivos é que se deslocam, vão da sala para o quarto ou para a varanda deste universo, mas todos os cômodos fazem parte da mesma casa.

As plantas e todos os tipos de vida têm sua trajetória existencial. Teriam sua história escrita se essa possibilidade estivesse no vocabulário das espécies que convivem com a vida humana. Como não aprendemos a falar a língua das plantas e das minhocas, e estas não usam nossa caligrafia, pensamos que elas nada têm de importante a dizer sobre sua existência. Por isso derrubamos as plantas, matamos as minhocas e secamos a terra.

O ser humano, por sua vez, parece disputar, com os demais tipos de vida, lugar para viver e se mover sobre a terra. Por isso, por onde passa, destrói o que precisa e o que não precisa para viver naquele momento.

Nossa cultura ainda deve assimilar a linguagem das plantas, dos animais e das águas, para poder dialogar em pé de igualdade com todas elas. Talvez tenhamos sido mal acostumados pela filosofia idealista, que defendeu, por muitos anos, que a terra era o centro do universo e por isso o "homem" deu-se a incumbência de tomar conta dela. "Crescer e multiplicar-se", colocando-se acima das demais espécies, considerando-se o senhor da natureza.

Essa visão equivocada fez com que os seres humanos se multiplicassem, mutilando as demais espécies, que também deveriam multiplicar-se. Nessa competição fratricida, enquanto os seres humanos se multiplicaram progressivamente, muitas espécies subtraíram-se indiscriminadamente.

Talvez as duas espécies que mais evoluam no planeta sejam a humana e as bacterianas que, de tempos em tempos, causam na espécie humana epidemias incontroláveis.

Quando os "Sem Terra" resgatam dentro de si a vontade de voltar a ser gente, buscam a terra e, num diálogo emocionado, às vezes com lágrimas e sangue vertido por balas, chegam à constatação de que o esqueleto do homem se parece com o esqueleto do latifúndio, a carne de ambos é devorada pelo capital. Por isso, fome e latifúndio têm a mesma cara, a mesma origem e a mesma identidade. Não são sanguinários o tempo todo. Preferem secar o corpo lentamente, até que o esqueleto se entregue e nada mais possa produzir. E então deite os ossos em algum lugar para que a terra os recolha e, através de sua saliva, os dissolva.

Terra e homem têm a mesma história de desconstrução da própria existência. O capital inaugurou a era do descartável. Sobre a terra joga-se lixo, sobre os seres humanos joga-se o preconceito e a desocupação, desconstrói-se o planeta, e o cidadão. Desta maneira, parte da terra e parte dos seres humanos são jogadas no berço da exclusão para chorar a dor da falta de cuidado e respeito.

Esta trajetória começou há 500 anos atrás em nosso país. Enquanto grupos poderosos nacionais e internacionais torturam e diminuem os seres humanos, deixando-os sem trabalho, estudo, saúde e condições dignas de vida, a terra é despida de suas florestas, envenenada pelos poros, intoxicando as espécies de microorganismos que se debatem em seu ventre ou no leito seco dos rios como as lágrimas da mãe que secam, cansada de chorar de dor e sofrimento sem solução.

É esse encontro dos diminuídos, no final do segundo milênio, depois de 500 anos de torturas, que leva esqueletos humanos, despidos de todos os recursos, a se decidirem abraçar-se à terra, para extrair de seu corpo o perfume que move a dignidade de um povo em marcha, na defesa da vida e do planeta.

Este encontro é conflitivo. Há os acostumados a desmatar e matar, sem respeitar a dor da consciência da terra que vê o fogo queimar, uma a uma, suas pernas-árvores, para depois cobrir seu rosto com capim ou simplesmente nada plantar, ficando esta imensa ferida, cortes profundos feitos pela erosão, enquanto as florestas vão embora para serem desmanchadas pelos dentes afiados das máquinas; e com isso as nuvens entristecidas se retiram deixando que o sol quente endureça a crosta da machucadura ressecada, impedindo aparecer vegetação alguma.

Estes tristes hábitos também compõem a cultura. Estes velhos ensinamentos ainda permanecem em muitas consciências de esqueletos agora assentados. Demora serem reconhecidos pela terra, pois, na pressa de fazê-la gerar alimento, ainda a maltratam. Buscam produzir a existência da mesma forma que os predadores fizeram no passado. Por isso a terra fecha os olhos para não ver as sementes produzirem caules enfraquecidos e raquíticos, que não alimentam e nem satisfazem os anseios de quem as semeou, ainda desenvolvendo a cultura da mutilação.

Os emissários do capital, assim que percebem o vento tremular uma bandeira vermelha, entendem que há outro território conquistado. Correm com a saliva entre os dentes, pela ansiedade de vender máquinas possantes, insumos, venenos e sementes para mover a indústria da destruição do solo e da esperança de vermos nascer daí novos camponeses libertos de todas as taras e vícios. Nestes casos, a tentação ainda se sobrepõe à consciência e à lei do menor esforço leva a consumir tecnologias que não favorecem a recuperação da terra.

Há tecnologias que vêm para o bem da terra e do ser humano, devem ser abraçadas e utilizadas para fazer companhia ao desenvolvimento. E aquelas que vêm para destruir e prejudicar devem ser rejeitadas e impossibilitadas de seguir em frente. Nem tudo o que se descobre e inventa está a favor da vida e do desenvolvimento. A rigor, a modernização tecnológica no campo brasileiro não chegou a ser sinônimo de desenvolvimento, porque, como quintal do colonizador norte-americano, aprendemos a consumir pacotes e não utilizar nossos próprios conhecimentos. Prova-se, assim, que dependência, ao invés de desenvolvimento, significa deformação da existência.

Mas há também os que se rebelaram contra aqueles que desrespeitam a bondade da vida e essa resistência sempre marca novas etapas, entendendo-se que, para resgatar a dignidade do ser humano e da terra, é preciso cuidar de alguns aspectos fundamentais, que abordamos nos tópicos seguintes: resgatar as virtudes inscritas na memória cultural da espécie e desenvolver a consciência estética.

Memória histórica

Como ponto de partida podemos dizer que memória é a existência já produzida com todas as suas dimensões. De outro modo, poderíamos dizer que a memória é a experiência feita por determinado grupo social que se organizou para produzir coletivamente sua existência. Talvez mais do que isto, a memória represente a ponte que vem do passado e nos leva rumo à construção do futuro. Memória é saber pertencer-se para poder entregar-se.

Há sabedoria na memória e é esta sabedoria que alimenta as raízes existenciais de um povo. Sabedoria muitas vezes enterrada nas covas do esquecimento pelas mãos interesseiras de grupos que não querem ver o povo se reconhecer nas entrelinhas das páginas escritas, contando a história a partir da visão do vencedor, e não dos quase vencidos.

Dizemos, então, que há memória nos restos de raças que ainda sobrevivem, e que lutaram em todas as gerações para manterem-se vivas e que os livros de história não deixam ver, para que não apareçam nas cicatrizes do tempo os nomes e os dizeres dos incansáveis lutadores pela igualdade entre os seres humanos. Há memória para os camponeses nas fases da lua, quando buscam plantar sementes no período mais escuro, para que germinem e não apareçam carunchos na colheita. Mas as empresas poluidoras preferem fazer nossa juventude acreditar que, para cada tipo de inseto ou erva daninha, existe um tipo de veneno que chamam carinhosamente de defensivos.

Há também memória no trabalho artesanal dos velhos camponeses das gerações passadas, que obrigavam-se a desenvolver os próprios instrumentos de trabalho antes da indústria apropriar-se deles, transformá-los, devolvê-los e modernizá-los, porém com custo elevado e manutenção insuportável.

Há memória na culinária das etnias, onde o conhecimento passava-se afetivamente para as moças que se orgulhavam de estarem prontas para casar, pois já sabiam cozinhar. Atualmente, a indústria dos enlatados e temperados roubou o gosto do paladar familiar e as pessoas se envenenam comendo sem controle todo tipo de alimento artificial, fazendo com que vivamos a maior contradição jamais vista na história, na incidência de causas de morte por intoxicação alimentar. Temos duas causas principais: morre-se de fome e morre-se de obesidade. Uns morrem sem sangue ou porque este que usamos tem "pouca tinta" (4); e outros morrem por terem colesterol alto, devido ao excesso de gordura no sangue.

Há memória nas fotografias em preto e branco onde aparecem os jardins, os pomares das velhas casas de madeira ou barro, onde enormes famílias reunidas até a quarta geração faziam suas confraternizações. O tempo foi amarelando as fotografias, levando os conhecimentos, deixando em seu lugar o vazio e a falta de imaginação de como era naquele tempo.

Nos livros também há memória, contadas pelas mãos hábeis de escritores verdadeiramente humanos que se empenharam em registrar detalhes daquilo que o pensamento não conseguiria guardar, uma identidade perdida que o analfabetismo nos tira o direito de buscar no registro das letras. Nas lembranças há memória. Nos contos, fábulas e lendas. Na vida dos lutadores do povo entregue inteirinha na construção de um sonho, mas que a classe dominante esconde, evitando muitas vezes deixar sinais até de onde esconderam seus ossos depois de assassinados, porque temem que a voz do sentimento fale mais alto que as palavras e que o povo se reconheça em seus heróis e queira resgatar seus ideais de uma só vez.

Há memória na crença traduzida de geração em geração, manipulada por oportunistas que usam da boa vontade e da fé das pessoas para facilitar aos opressores enfiar mais fundo a espada da dominação na consciência já sem cor da classe trabalhadora e desempregada.

Há conhecimentos biológicos e farmacológicos, desenvolvidos naturalmente pelas nossas gerações passadas, cujos inventos as empresas multinacionais patenteiam hoje como se tivessem surgido do nada.

Enfim, nos menores detalhes há a memória que faz parte da construção da existência de nossos antepassados e que dorme em alguma dobra do embrulho que traz a história. Até nossas mãos têm sabedoria e memória, mas cabe a nós ter consciência da importância deste passado, para sabermos como olhar corretamente para o futuro.

Quando vamos para a terra, esta memória nos acompanha e é com ela que principiamos a organização de um novo momento histórico, procurando produzir uma nova existência.

As virtudes extraordinárias

Virtude para nós é a capacidade que temos de fazer coisas extraordinárias permanentemente. Somente desenvolve virtudes aquele que tem capacidade de voltar-se para o bem. Os poderosos temem as virtudes porque elas têm o poder de provocar a resistência contra a dominação e contagiar aqueles que devem derrubar suas estruturas.

Se virtudes são capacidades extraordinárias, as conquistas coletivas sempre são vitórias extraordinárias. É por isso que os lutadores trazem o coração carregado de virtudes, onde o povo em marcha procura encostar-se para buscar ali a energia que lhes falta. O povo sente vontade de abraçar seus líderes por causa das virtudes que estes possuem e porque sente que elas também lhes pertencem.

Muitas vezes, até mesmo na fraqueza se manifestam virtudes que jamais imaginávamos existir, e elas têm o poder de alastramento que pode impulsionar grandes mudanças em curtos períodos de tempo. Para ilustrar, destacamos a história dos escravos romanos. Encontramos nos registros históricos que, no ano 71 a.C., houve na antiga Roma uma revolta de escravos que durou cerca de dois anos. Essa revolta foi comandada por Spartacus, um escravo que despertou para o sonho de liberdade e ao seu redor conseguiu arrebanhar cerca de 20 mil escravos, um número pouco significativo diante do poder do império romano na época comandado por Caius Crassus. As sucessivas batalhas iam cada vez mais dando moral e referência aos escravos, atraindo outros escravos para a luta, até o dia em que foram capturados e crucificados, pois o instrumento da pena de morte da época era a cruz.

Durante o tempo que durou a revolta, os poderosos tentavam de todos os meios dizer que já haviam dominado os escravos e, de dia, espalhavam notícias procurando convencer a população dessa mentira. Mas, durante a noite, o clarão das fogueiras acesas denunciava que os escravos ainda estavam lá, resistindo, e este esplendor convidava os demais escravos a sairem das mansões e dos palácios e somaram-se a eles. Portanto, não era a força dos escravos que os poderosos temiam, mas sim as virtudes que eles apresentavam, e as fogueiras eram fundamentais para desenvolver esta representação.

De onde vinha esta força? Vinha da virtude da confiança. "Não há uma definição clara para um homem que conduz outros homens. O comando é uma coisa rara e intangível, sobretudo quando não se apóia nem na força nem na glória. Qualquer homem pode dar ordens, mas dá-las de maneira a que outros obedeçam é uma qualidade" (5), e esta qualidade Spartacus possuía.

Na medida em que os trabalhadores Sem Terra decidem abandonar a vida de "indigência", despertam em si o sonho de liberdade, e passam a desenvolver e apresentar virtudes que intimidam os poderosos que mentem, usando agora a televisão e os jornais, dizendo que derrotaram os lutadores da reforma agrária. Mas, à noite, quando menos esperam, lá se vão legiões de famílias empilhadas em caminhões ocupar fazendas abandonadas e descobrindo a possibilidade de renascer. Aos poucos, o vermelho das bandeiras, como se fosse o esplendor de uma grande fogueira, avisa que ali os escravos buscam a liberdade e convidam outros tantos a forjarem juntos o próprio destino.

Desta maneira, cria-se uma nova cultura em torno das virtudes. Esquemas de organização são desenvolvidos e experimentados. Pais e mães de famílias, que até pouco tempo eram apenas chamados pelos filhos, agora são anunciados ao microfone para participar de reuniões onde decidirão o futuro de suas vidas. Passam a assumir responsabilidades, liderar pequenos grupos e desenvolver tarefas que beneficiam a coletividade. Extingue-se temporariamente o machismo e a dominação de um sobre o outro, porque na estabilidade podemos ser diferentes, mas no perigo somos todos iguais. A insegurança transforma-se em desafio. A mãe outrora tímida e submissa, abraçada aos filhos, coloca-se em frente aos pelotões sanguinários que se apresentam para manter a ordem apodrecida.

Permanecendo alguns dias já se vê nascer ali uma cidade, neblinada pela solidariedade. Nascem cabanas que servem de casas, escolas feitas de plástico e bancos de varas roliças, mas as crianças aprendem o que tem de melhor na esfera da educação infantil. Em poucos dias estão falando frases de Paulo Freire e de outros educadores importantes como Anton S. Makarenco (6), como a que diz:

estou convencido de que o objetivo da nossa educação consiste não só em formar um indivíduo criador, um indivíduo cidadão capaz de participar com a maior eficiência na construção do Estado. Nós devemos formar uma pessoa que sem falta seja feliz. (7)

Através de comissões, busca-se resolver os problemas que a própria convivência social produz, como é o caso do lixo. Nas cidades costuma-se atribuir a tarefa da limpeza à administração pública e, se o prefeito não tomar providências, a cidade fica insuportável pelo simples fato de que as pessoas pagam impostos. Ora, os impostos não podem ter o direito de eliminar a solidariedade entre as pessoas e o cuidado com a preservação da vida! Aqui surge uma virtude fundamental, que é a da preocupação com o zelo pelo que é nosso. Os conceitos de público e privado, sem diminuir a responsabilidade de ninguém, são superados, na medida em que o processo educativo reconstrói o ser humano em outra direção, exigindo sua participação, e isto se torna cultura.

Há dizeres e pensamentos produzidos que se transformam em trincheiras ideológicas, buscando não só o melhoramento do comportamento, mas a limpeza dos vícios que se acumularam em cada consciência, como o lixo das perversidades que endurecem as relações e, por isso, precisamos combatê-las com doçura e energia. Vimos em uma escola esta criação ideológica: "Escola limpa não é a que mais se limpa, mas a que menos se suja". É um verdadeiro chamado à responsabilidade com aquilo que é público.

Em poucos dias abrem-se cacimbas coletivas e inicia-se o tratamento da água. Banheiros coletivos para homens e outros para as mulheres. Estabelecem-se normas de convivência e assim reorganiza-se em poucos dias a nova forma de produzir a existência humana, acordando virtudes adormecidas no leito do tempo, que passam a povoar os sentimentos e controlar as vontades que levam aos desequilíbrios na convivência social.

Os poderosos se espantam quando observam um enorme aglomerado de pessoas onde não se requisita força policial para intimidar e manter a ordem. Os próprios Sem Terra organizam e tudo funciona sem prisões nem repressão.

Nas marchas organizam-se longas filas que causam inveja aos que assistem à passagem. Emocionadas, as pessoas esperam o momento para lançarem-se sobre os camihantes, para abraçar e derramar lágrimas quentes nos seus ombros, como bálsamo refrescante que alivia as dores do caminho. Também nas marchas não se requisita força policial para orientar o trânsito.

É a força da terra que desperta virtudes, onde o comando não emite ordens, solicita e recomenda cuidado pelo simples fato de saber que ali vão seres humanos, que não são números nem tampouco indivíduos enfileirados, mas que possuem sentimentos e levam no coração saudades dos filhos que ficaram nos acampamentos, cuidados por outros pais que não puderam seguir a marcha.

Se a saudade na distância é forte, a vontade de chegar é maior. Com os olhos fixos no vazio do horizonte que se coloca à frente, cada um quer saber o que se esconde após o topo da ladeira. Assim vivem as utopias. A cada topo alcançado, novo topo se deve alcançar, mas valeu a pena ter caminhado. Sem esta persistência, a história não tem sentido.

Este é o caminho que leva à reconstrução e coloca a revolução em marcha. Não é fácil reconstruir-se quando já nos tiraram o material mais precioso que é a dignidade de ser gente. Um ser humano reconstrói-se na medida em que acredita que dentro de si há material importante para tapar os vazios que a dominação cavou. Não é fácil ser livre quando ainda não aprendemos a pronunciar a palavra liberdade.

Caminhamos ocupando espaços que outrora temíamos ocupar. Marchar é mais do que viajar, é caminhar em busca de surpresas. A cada passo uma emoção, um gesto de carinho, uma mão estendida que parece querer esculpir em nós o novo homem ou mulher que pretendemos ser e, como estátuas inacabadas, abraçamos os escultores, como a pedir ajuda para que encham os espaços vazios que descobrimos dentro de nós, pelo fato de, um dia, os opressores nos terem feito acreditar que nada mais éramos e nada mais poderíamos ser.

É caminhando que descobrimos o espaço vazio do analfabetismo que viaja conosco e nos provoca a perguntar ao caminhante ao lado o que dizem as letras em cada placa à beira da estrada. Ou quando alguém nos entrega um panfleto de solidariedade e, envergonhados, o dobramos e o colocamos com respeito no bolso da mochila que vai molhada sobre nossos ombros.

É caminhando que vemos o vazio do latifúndio protegido por cercas e a fome rondando as cidades.

É caminhando que vemos o medo nos olhos das janelas das casas, escondidas atrás de grades, temendo que os pobres queiram fazer justiça pelos longos anos de violência aplicada para acumular riquezas.

É caminhando que vamos descobrindo e esculpindo em nós uma nova consciência, porque os olhos parecem ver não o que está ocupado, mas sim os espaços que se deve ocupar.

Há muitos espaços vazios que ao esculpir, vamos descobrindo. O latifúndio, em 500 anos de história do Brasil, não destruiu apenas a terra, mas também a consciência dos pobres e trabalhadores, por isso milhões deles andam como se estivessem cegos. Em cada cabeça há um latifúndio que não deixa produzir virtudes e valores, que embrutece as relações sociais e humanas, que abre profundos rasgos de erosão na memória, fazendo-nos acreditar que a história começou com nosso nascimento individual, antes disso "nada" de importante existiu. É a cultura do vazio e do esquecimento.

Descobrimos também neste caminhar a importância da mão amiga que nos arrasta para o futuro e neste espaço vamos trançando experiências, conhecimentos, comportamentos, idéias, virtudes, enfim, vamos construindo uma verdadeira interação.

A existência do espaço interativo é fundamental para o processo de construção do conhecimento, na formação dos sujeitos, e para o avanço da organização do movimento social. Pois é também nesse espaço onde se desenvolvem as relações, articulações e alianças. (8)

Estas descobertas e vivências, misturam-se às ansiedades e convidam para que produzamos nossa nova existência

A consciência estética

A estética, no seu sentido amplo, deve significar a capacidade que o ser humano tem de marcar sua existência no mundo, produzindo objetos úteis e belos para sua sobrevivência, dando a eles um sentido de continuidade da própria existência. O belo se eterniza na permanência dos objetos criados. Neste sentido, emanamos a beleza que plenifica gestos e razões como identidade de um povo.

Na origem da palavra estética está o sentir. Ela vem do grego aisthesis, que significa a faculdade de sentir. Logo, ela se torna importante para a vida humana, pois está ligada ao desenvolvimento da criatividade e da capacidade de sentir, elementos que formam as características da consciência estética.

Como a produção da existência consciente exige elevada capacidade de criatividade, pois mesmo nos pequenos detalhes usamos o intelecto e as mãos para produzir coisas e colocá-las em ordem, podemos considerar todo e qualquer ser humano artista e arquiteto de sua própria história. Para isto se torna fundamental a criação da consciência estética. Esta consciência estética se configura na qualidade de gostar. Desenvolve-se desta forma a pedagogia do bom gosto. Este sentido acrescenta-se em nós da mesma forma como qualquer outro, e deve ser exercitado diariamente, caso contrário atrofia e desaparece. É a busca da beleza que nos faz pentear os cabelos todos os dias, cortá-los quando vemos que tiram a beleza dos traços da face, como se a moldura estivesse deformando-se.

A obra de arte de um camponês Sem Terra não se encontra em paisagens pintadas, ou em escritos filosóficos que se tomam obras, mas na paisagem real que se torna poesia. Aquilo que é novidade na natureza para alguns, para um Sem Terra não é, ou pode ter outro significado. O pôr-do-sol, que para muitos pode representar um fenômeno artístico, pintado pelas mãos invisíveis do criador da natureza, para o camponês pode representar apenas a fadiga de um dia duramente trabalhado, onde agora, ambos "vermelhos" de cansaço, no colo da noite adormecerão, para renascerem no dia seguinte e, dispostos, acordarem o amanhecer.

Nossa preocupação está então em saber valorizar o que de belo há na natureza e, usando as suas próprias forças, tornar mais bela a vida cotidiana.

A estética representada pela arte no mundo do capital se transforma em mercadoria, utilizada como elemento de poder para dominação e alienação das pessoas. A beleza em nossos assentamentos não é para ser comercializada, mas sim para demonstrar que caminhamos rumo à reconstrução da vida com as flores cultivadas, com o único objetivo de perfumar o caminho neste quadro de arte pintado pelas mãos de um desconhecido, que usou a enxada e os dedos como instrumentos básicos da edificação desta grande obra. Assim, a cor marrom está na própria terra e o verde está contido na própria muda da flor, que se deita sobre o leito macio preparado para a fecundação. Assim irá fazer parte da paisagem.

Nossa pintura tem mais sensibilidade por ser real, porque respira e emite perfume sensibilizando também nossa consciência estética. Essa pintura é real. Acima de tudo, porque o pintor não pode imaginar-se fora. Está dentro, e sem ele a paisagem não terá a mesma beleza. Este ser social, transformado em pintor, existe na realidade objetiva e subjetiva. Ocupa um lugar de destaque, movimentando-se de um lugar para outro para assumir um posto de melhor ângulo e continuar sua obra. Esta pintura é bela porque está em permanente movimento. Somente se pode olhar uma vez e fixar a imagem, no momento seguinte já não é a mesma paisagem porque muitos elementos mudaram de lugar, as nuvens foram para longe, os pássaros voaram em busca de outros galhos e o homem abraçou-se à mulher para emergirem em uma nova relação de igualdade e prazer.

O contato com esta beleza natural educa os demais sentidos, como amar, gostar, admirar, sorrir e cantar. Desperta interesse coletivo de reproduzir esta obra de arte. A classe dominante, quando vai aos leilões de arte, compra por altos preços obras que leva para casa, trancando-as em cofres, tirando a liberdade da beleza poder tocar os sentimentos das pessoas e fazê-las sentirem-se mais humanas. Escondem as pinturas devido ao egoísmo que os amarra e porque são incapazes de reproduzi-las. Nessa insegurança, oprimem-nas através da escuridão das paredes de aço, não deixando que falem e nem digam, com seus traços, que para ser verdadeiramente gente é preciso criar. Os dominadores não são puramente humanos, se assemelham às máquinas, sem sentimentos, sem alegria e sem imaginação. Criam os mundos de fantasias onde o capital lhes dá as ordens para cada movimento que devem fazer. Eles não sabem construir urna paisagem livre e bela. Quando necessitam criar, chamam um trabalhador para desenhar-lhes algo que possam exibir aos seus colegas. É a cultura da frieza e da dominação.

Porque então damos flores de presente? É errado fazer isto? Não. Damos flores de presente porque somos incapazes de explicar com palavras o que sentimos. Precisamos das pétalas e do perfume para que as mãos possam externar nossos sentimentos. Mas mesmo assim as flores murcham para dizer que a beleza não está em um gesto isolado. É preciso continuar sensibilizando nossa consciência para que ela não se acomode e crie sem limites novos gestos de carinho e afeição.

Nós somos mais criativos porque somos mais livres, e criamos nossas paisagens sem medo de que alguém as roube, pois sua grandeza física e estética se torna impossível de transportar. Quando conseguem roubá-las, apenas levam pedaços e a beleza desapareceria logo porque suporta poucos dias a arrogância humana. Talvez seja por isso que as flores murcham, porque não aceitam conviver com a insensibilidade que, ao retirá-las dos jardins para colocá-las sobre as mesas, deixam para trás as raízes que lhes deram a vida. A beleza somente sobrevive quando estiver ligada às suas raízes.

Se somos nós que fazemos a história, significa dizer que nela ficam nossas impressões digitais. Seremos reconhecidos por elas quando nossos descendentes forem recordar do pedaço de existência que nos coube viver e produzir. As obras de "arte" estarão presentes em tudo, porque tudo foi feito com a imaginação, força física e habilidade de nossas mãos, no espaço aberto da natureza.

Desta forma a estética está presente em tudo o que fazemos. Ela é a intermediação que existe entre o querer e o fazer, entre o servir e o sentir. Isto nos leva a aproveitar pedaços da grande paisagem já pronta, para apenas acrescentarmos aquilo que o imaginário humano consegue inventar. Plantamos, entre as árvores, casas com chaminés fumegantes. Espalhamos animais domésticos por entre as árvores, aproximamos as flores das casas e semeamos alimentos por uma outra extensão; ao fundo, o rio corre mansamente e, ao pé da montanha, limpamos um lugar para banhar-nos, deixando que as águas levem embora nossas canseiras e mágoas. Compõem-se assim as paisagens reais. Cada lote é um quadro pintado pela capacidade de cada família de pintores.

Há desequilíbrios. São acidentes provocados por pintores descuidados que, na pressa de fazer sua paisagem, derramam mais tinta do que o necessário, borrando parte da tela com venenos, queimadas e lixo, trazidos nas compras do supermercado.

Levam-se anos e às vezes várias gerações para se aprender pintar a obra imaginada por nossos sonhos, exatamente porque o sonho não se realiza sem a recriação do homem e da natureza. Ao mesmo tempo em que criamos, nos recriamos. Pintar é também se pintar nesta paisagem viva. A consciência estética é lenta para se desenvolver, mas sem ela é impossível reconstruir a paisagem florida onde deverá multiplicar-se a vida humana e assim tomar-se existência.

Quando a estética se toma cultura? Quando os seres humanos descobrem que a beleza é parte integrante do ambiente onde vivem, até o dia da partida, a hora de passá-lo para outros seres mais jovens.

Quando o tempo determinar que não mais nos quer ver andando sobre a terra, pede-nos para retirar-nos e deitar-nos de barriga para cima, onde a terra, num diálogo silencioso, nos transformará e nos distribuirá para que as demais espécies possam sugar nossa energia e fortalecer sua existência, misturada à nossa nova forma de existir. Desta maneira é que a terra não é só terra nem a árvore é somente árvore, assim como o indivíduo não é somente indivíduo As células e os átomos que compõem a matéria se deslocam em um movimento vivo, e introjetam-se, entrelaçando-se para formar uma "nova" matéria. Há momentos em que pisamos sobre a terra e comemos as plantas. No momento seguinte entramos na terra e as plantas nos comem com suas raízes e nos transformam em plantas. Este morrer e viver permanentemente é que possibilitou nosso planeta estabelecer esta harmonia em milhões de anos de existência.

Esta intima relação não está nas conseqüências, mas na causa que originou a intimidade entre terra e homem. Esta origem está no húmus. Daí que homem vem de humus. Somos esta mistura de pó e água com características novas, nos locomovendo; sonhamos, pensamos, acreditamos e caminhamos em direção à construção da utopia. Somos, em resumo, esta terra boa em movimento.

Somos este húmus sem-terra, andarilho, que se rebela por ser violentamente afastado da terra e só pode ter utilidade voltando a ela. Pela morte ou pela luta. Em ambas as situações há a retomada da terra, para tornar-se terra ou para tirar dela o sustento e manter este húmus humano em movimento. Por esta razão é que nossa consciência ecológica se revolta quando há desrespeito com a natureza, porque na seiva das árvores há sinais de sangue de nossos antepassados que foram absorvidos pelas raízes das plantas.

Na medida em que conquistamos a terra, há um desafio enorme de reconstituição da história desses locais: nos sentimos chamados a reconstruir as florestas através do plantio de árvores, a edificar pomares e jardins, mesmo ao redor dos barracos de lona crescem flores coloridas, plantadas pela simples vontade de tornar o local mais bonito e atraente.

Em uma ocupação, quando finda o período de acampamento e a terra foi liberada, ficam resquícios de guerra, lonas rasgadas, varas enfileiradas que serviam de esteios para as casas, fogões de barro abandonados, restos de potes quebrados, sandálias desgastadas e tantos outros objetos esquecidos, que ajudaram na resistência física e sentimental. Mas nesta dispersão de coisas aparecem árvores e flores plantadas no desespero da ameaça do despejo, que psicologicamente ajudaram a imaginar que nas raízes das árvores e nas flores estava a simbologia da resistência e da ligação à terra; que os encarregados pelo despejo e pela violação dos lares teriam que fazer força para arrancar-nos dali; e que, se passasse um tempo significativo, não nos arrancariam mais.

A consciência ecológica e estética nos diz que devemos colocar ordem nos destroços e que, ao mesmo tempo em que partimos para a construção das novas casas, o terreno que serviu de tapete para instalarmos nossos sonhos e preocupações deverá ficar limpo e organizado. Limpa-se o solo pisado e endurecido para plantar árvores e fazer renascer a vida, junto com a libertação da terra e das pessoas que acreditaram e venceram.

Chega o dia em que a luta vence a opressão. Chega o tempo de construir as casas em meio a um choque de interesses. O governo aposta que uma casa de 42 metros quadrados é suficiente para uma família morar e, para impossibilitar sugestões, impõe uma planta comum para todos. Na vontade de possuir a casa, cada família aceita a imposição, mas assim que passa a habitar nela percebe que não satisfaz as necessidades, pois possui apenas quatro cômodos e às vezes o casal tem oito filhos e a vida fica incômoda. A necessidade desafia a criatividade, e lá se vão todos se empenhar na construção de varanda para aumentar a cozinha e os dormitórios, agora de forma rústica. Pode-se perder em beleza, mas ganha-se em criatividade, iniciativa e comodidade. É o anseio de se ter uma casa, com condições de abrigar as pessoas da família com todo conforto possível, que nos faz desenvolver a criatividade.

Segue-se em frente e percebe-se que o poder do criador agora é humano. Animais são bem tratados e enfeitados, principalmente os cavalos que ganham novos apetrechos e ferraduras. Os pomares florescem. A bandeira do MST é pintada nas paredes dos galpões, casas e escolas. Não há uma praça de assentamento em que não esteja lá uma bandeira dançando ao sopro do vento, contrastando com o verde da vegetação em terra. Os animais domésticos passeiam entre as crianças de ventres livres, que correm em direção aos seus próprios brinquedos. As mulheres recolhem dos varais as roupas secas e macias, já sem remendos, após uma jornada de trabalho gratificante na cooperação comunitária. As portas das casas se abrem uma a uma lentamente, como se quisessem dizer boa noite aos jovens que saem para ver a lua nascendo. Não há muros em frente às casas, as grades do medo e da exclusão ficaram em alguma dobra do passado. E na linha da reconstrução e do desenvolvimento humano, vêm os cuidados estéticos com o próprio ser humano.

É a razão maior de produzir cada obra de arte em cada área conquistada e em cada ser humano, buscando refletir sobre cada ruga estampada na face da existência, que distingue e que nos dá identidade. Desta forma melhora-se a aparência. Reconstituem-se dentaduras, melhora-se o vestuário, trocam-se os móveis da casa, adquirem-se novos eletrodomésticos, enfim, toma-se consciência da importância da aparência física como filhos da terra, recriados por ela em busca da manutenção da dignidade.

O trabalho é, desde o início, o fator de produção do próprio ser humano. No decorrer da história da humanidade o trabalho foi se tornando algo punitivo e pouco prazeroso, devido à escravidão e à exploração do capital no desenvolvimento das forças produtivas.

No resgate do ser humano, resgata-se o sentido do trabalho que possa reconstruir de forma voluntária o ser deformado. Também resgata-se o sentido das técnicas que mantenham a estética do corpo. Isto irá despertar o interesse pela beleza como método pedagógico na retificação da conduta. "0 instrumento principal da influência pedagógica deve ser o método intuitivo demonstrativo da beleza na arte, no trabalho e no comportamento dos homens." (9) Essa criação antecipada como referência, influi para que os demais seres sociais Sem Terra sintam influência deste meio, e adquiram características complementares, retificando seus hábitos.

Pela urgência de produzir, muitas pessoas lançam mão de instrumentos e insumos que prejudicam, mutilam e deformam o corpo humano, fruto de um método demonstrativo do trabalho depredador. Carrega-se água na cabeça enquanto há múltiplas formas de fazer a água chegar sem esforço em cada casa, e usam-se defensivos, "ofensivos" agrícolas, quando há dezenas de formas de combater as pragas e doenças, fruto do desconhecimento e da alienação por parte das empresas de venenos, que estabelecem as bases de seus lucros sobre a depredação e destruição do ser humano e da natureza.

As tentações do passado às vezes nos obrigam a virar a cabeça para ver o que não queremos mudar; é como se uma força misteriosa nos empurrasse para o lado de um coordenador e entregássemos a ele o poder das ordens e ficássemos aguardando o momento de agir. Se não há ordens não haverá ação. Aí nasce a centralização do poder e a vontade de ser superior aos demais seres humanos. Essa apatia se transforma em conformismo e assim morre a indignação.

O gosto pelo belo está em todos os aspectos da vida e da organização social e política, por isso é que a estética está em todos os sentidos orientando-nos que um simples gesto tem sua beleza. A forma de falar, de sorrir e dizer tem sua beleza. Há pessoas que falam muito e não cansam seus ouvintes, quando terminam de falar parece ouvir-se um ruído de pena por terem terminado. Há beleza na forma de organizar e dirigir. Muitos líderes têm a perspicácia de indicar o caminho e, sem muitas explicações, convencem seus companheiros e companheiras. Assim, tornamos a estética parte de nossa existência, uma parte agradável que dá qualidade aos segundos em que respiramos e desenvolvemos em nós o gosto de viver e desenvolver a beleza.

É fundamental acreditar que desenvolvemos nossa existência num cenário como se fosse uma tela de pintura, onde cada movimento nosso significa um traço na montagem desta paisagem. A alegria significa as cores alegres, a tristeza e o mau humor as cores escuras e tristes. Revisando nossa história podemos perceber claramente como está pintado o quadro da história particular de cada um. Se foi bela, o quadro estará perfeitamente pintado com cores alegres, se foi uma vida atribulada será um quadro triste, onde predominam as cores escuras. Importante é que não tenhamos medo de expor na galeria de arte da história este quadro, e ter consciência de que é possível melhorá-lo, agora que temos mais consciência da importância de nossa existência.

Sobre as cores tristes é possível colocar cores alegres e fazer o cenário de nossa história mudar. Por isso é preciso acreditar em nossa capacidade de pintores, adormecida em nossa consciência. Dormem dentro de nós poetas, escritores, contadores de fábulas, músicos e humoristas; somente nossa auto-estima pode acordá-los.

Temos nossos ideais políticos, organizativos, econômicos, etc. Precisamos estabelecer também ideais estéticos que possibilitem nossa intervenção no cenário histórico para transformá-lo, a fim de que vivamos em harmonia com todos os tipos de vida e socialmente felizes, bebendo nesta fonte limpa da beleza.

1 Nota do editor: Este texto constitui parte do Capítulo I do Caderno de Formação n.34, intitulado O MST e a Cultura, publicado pelo Coletivo Nacional do Setor de Cultura do MST (São Paulo, 2000) (Reprodução autorizada). No prefácio, o autor explicita o caráter de existência e resistência do projeto cultural dos assentamentos, em termos de educação, trabalho, preservação da natureza, mecanização, estética e produção cultural. Após um preâmbulo sobre o significado da cultura para Karl Marx, ele faz uma retrospectiva da história da exclusão social no Brasil na qual os Sem Terra se inserem mas cujo curso tentam reverter. Discorrendo sobre a cultura dos rejeitados, ele ressalta estarem inscritas as marcas da história nos corpos esquálidos e deformados dos que migram para as cidades grandes, onde suas raízes se perdem e onde eles são, ademais, desajustados. Embora a perda seja irrecuperável, ele argumenta, as raízes com a cultura do campo podem ser religadas; busca-se, assim, um renascer, através do cultivo da sabedoria milenar do homem do campo e dos valores que eles guardam na memória, como lealdade e solidariedade. A cultura caipira, predominantemente oral, também permanece nos arquivos da memória de um povo que, contra 50 anos de vida urbana, tem 450 anos de existência ligada à terra (Bogo, 2000: 3-22).

2 Ademar Bogo é militante do MST, ex-seminarista, que atua no Setor de Formação do Movimento. Sistematiza em livros e Cadernos de Formação diversos aspectos da cultura do Movimento, como a mística, a educação e a música. É também conhecido como poeta e pela autoria de músicas utilizadas pelo movimento, notadamente o hino do MST.

3 Georges Politizer. Princípios fundamentais de filosofia. São Paulo: Hemus Editora, [s.d.]. p. 108.

4 João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 14. ed. 1980, p. 71

5 Fast Howard. Spartacus. Fundação Europa-América de Portugal, 1974, p. 118.

6 Anton Makarenco, renomado pedagogo russo que se dedicou à educação de crianças de rua de 1920 a 1935.

7 Anton Makarenco. Problemas de educação escolar. Moscou: Editora Progresso, 1986, p. 29.

8 Bernardo Mançano Fernandes. MST: Formação e territorialização. São Paulo: Editora Hucitec, 1996, p. 223.

9 Verb, M.A. La educación estética de los escolares. In Teoría y metodología de la educación comunista en la escuela. Combinado Poligráfico de Guantánamo, 1984,
p.217-18.

Ensaios : Editado por Else R P Vieira. TraduĆ§Ć£o © Thomas Burns.

Data:

novembro de 2002

Recurso ID:

CULTUREO381

		À Universidade da página bem-vinda de Nottingham

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Queen Mary University Of London, Grã-Bretanha

Coordenadora do Projeto e Organizadora do Arquivo: Else R P Vieira
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Arquivo criado em janeiro de 2003
Última atualização: 07 / 05 / 2016

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