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As Imagens e as Vozes da Despossessão: A Luta pela Terra e a Cultura Emergente do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)

Língua:

Português (change language to English)

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Cultura emergente por tipo de mídia -> Ensaios 3 recursos (Editado por Else R P Vieira. Tradução © Thomas Burns.)

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Este recurso se encontra também em:

História: Marchas, marcos, congressos

Autor:

João Pedro Stedile

Título:

Há vidas na reforma agrária

Muito já se falou e escreveu sobre a luta pela reforma agrária. Prós e contras. Escreveu-se sobre sua viabilidade econômica, sobre a trajetória histórica dos movimentos camponeses e suas lideranças. Sobre a necessidade de superar a gritante concentração de terra existente em nosso país. Sobre o poderio econômico, social e político dos coronéis do campo. Sobre os promissores resultados obtidos pelas famílias assentadas. Não faltam até mesmo registros sobre os diferentes governos que, demagogicamente, sempre prometeram fazer a ñ nunca realizada ñ reforma agrária.

E, correndo o risco de parecer contraditório, é exatamente por nunca ter sido realizada que a reforma agrária escreve uma das páginas mais ricas da história de nosso país. A luta dos trabalhadores para se libertar da opressão do latifúndio e democratizar o acesso à terra determinou fatos marcantes de nossa história, desde a chegada dos portugueses até os dias de hoje: a luta dos povos indígenas para não serem escravizados ou exterminados física e culturalmente; os quase quatrocentos anos de lutas dos povos negros contra os grilhões do trabalho escravo, pilar de sustentação e de desenvolvimento das grandes fazendas; a coragem heróica dos sertanejos liderados por Antônio Conselheiro no Nordeste, e dos camponeses da região do Contestado, no sul do país; a façanha das Ligas Camponesas, que tanto assustaram as elites deste país simplesmente por terem se organizado e lutado pelo direito a trabalhar na terra, livres da humilhação dos usineiros. Esses são apenas alguns exemplos da luta histórica de nosso povo contra o latifúndio.

Agora, depois de passar um longo período esquecida, a luta pela reforma agrária voltou a ocupar espaço na mídia e nas discussões sobre os problemas centrais de nosso país. Contrariando as afirmações de muitos estudiosos e especialistas, que consideravam a questão agrária já superada, e rompendo o bloqueio de informações imposto pelas elites, o debate sobre a reforma agrária voltou a figurar no cenário nacional.

Há quem pense que o destaque hoje obtido pela reforma agrária é apenas uma onda passageira, conseqüência da popularização do tema graças a uma novela de televisão(1). Para o governo, trata-se simplesmente do barulho provocado por pequenos grupos que lhe fazem oposição. Muitos tentam menosprezá-la dizendo que tem motivação política, como se a reforma agrária não fosse um problema essencialmente político. Esquecem-se de que, por trás das lutas, dos protestos das praças, das longas caminhadas, debaixo das lonas pretas dos acampamentos, há vidas. Vidas sofridas por causa da fome e do frio. Vidas ameaçadas pelas armas assassinas do latifúndio e pela arbitrariedade da polícia. Vidas marcadas pela dor de ouvir o choro de uma criança com fome. Vidas que foram privadas do acesso à saúde, à educação e aos benefícios proporcionados pelos avanços científicos e tecnológicos. Vidas calejadas pela exclusão social a que foram submetidas durante os quinhentos anos de nossa história.

Mas, por trás da luta pela reforma agrária, há também vidas alegres ao ver seus filhos desenharem a primeira letra do alfabeto. Há vidas esperançosas que sonham com o primeiro plantio, a primeira colheita, a primeira mesa farta com alimentos. Há vidas solidárias ao receber as visitas, os incentivos, os donativos dos que partilham o mesmo sonho de ver a reforma agrária acontecer. Há vidas corajosas que não temem cortar o arame farpado do latifúndio, única alternativa para vislumbrar dias melhores para suas famílias.

Com tanta vida, como imaginar que a luta pela terra seja modismo ou manipulação política? Pode ser que o espaço da mídia seja passageiro, uma vez que, como a terra, os meios de comunicação estão quase todos concentrados nas mãos de uma elite conservadora, avarenta de riqueza e poder, plenamente identificada com os interesses dos latifundiários.

Porém, a teimosia de nosso povo, a necessidade de satisfazer as condições básicas de uma vida digna e a certeza de que é possível construir um Brasil democrático, socialmente justo e igualitário, nos dão a garantia de que a luta pela reforma agrária somente cessará quando a propriedade da terra for realmente democratizada.

Há vida na luta pela terra. Há vozes. Vozes que muitas vezes parecem apenas vindas das lideranças que recebem espaço na mídia, nos debates, nos atos públicos. Mas elas são caixas de ressonância das vozes dos acampamentos, das marchas, das lutas e das conquistas.

Essas Vozes da Marcha pela Terra são o registro histórico dos que realmente fazem a história: os trabalhadores anônimos. Nossos militantes da reforma agrária.

O relato de vida das pessoas entrevistadas é a melhor defesa que se poderia fazer da reforma agrária. Nele encontramos os dramas, as conquistas, as alegrias e tristezas, a coragem e o medo dos que lutam, os desafios que foram superados, o orgulho de estar presente na luta o companheirismo, a solidariedade e a identidade forjadas ria vida de um acampamento, a ousadia de vencer o latifúndio.

Como não se emocionar com o relato desses lutadores e lutadoras? Como permanecer insensível diante da canção feira por Cristiane de 14 anos, que diz: "Sou criança e sei pensar. Tenho direitos e vou cobrar uma vida digna"? Como não admirar a coragem de Maria José, que não hesita em afirmar: "Se tiver que morrer na luta, vou morrer. Mas não vou sair daqui de cabeça baixa". Como não se comover ao constatar que Lúcia, de 23 anos" está impregnada da felicidade de se sentir artífice de um futuro melhor para sua família, e de cotidianamente viver em comunhão com pessoas que acreditam e amam"? Esta é a luta pela reforma agrária. Estas são as pessoas que estão fazendo esta luta.

As entrevistas realizadas são fundamentais para quem quer compreender o que é essa luta, qual é o combustível que move essas pessoas, quais são seus sonhos. São matéria indispensável para quem quer saciar a sede diretamente na fonte. Estes relatos exalam o cheiro da terra, do povo, da vida.

Mas os depoimentos das entrevistas não servem apenas para os que querem conhecer e entender a luta pela terra. Eles são indispensáveis também para os que já estão na luta. São depoimentos que nos servem de incentivo e ânimo. São testemunhos de vida que nos dão certeza de que estamos no caminho certo e que as conquistas são recompensadoras. São a certeza de que cada militante da luta pela reforma agrária encontrará nestas páginas o incentivo necessário para continuar lutando. São a história de vida de nosso povo lutador.

A riqueza destes relatos estaria comprometida, porém, se eles encontrassem ouvidos insensíveis. Mas a entrevista não se limitou a apresentar perguntas e recolher respostas. Ela teve o mérito de captar os sentimentos, de saber ouvir e respeitar as características de cada entrevistado. A interação entre entrevistador e entrevistado resultou nesta coletânea de depoimentos de vida, que não é um mero amontoado de entrevistas. Nesse detalhe também reside a riqueza deste livro.

Certamente ele será de grande importância para que a reforma agrária atinja amplos setores da sociedade e atraia um número maior de simpatizantes e militantes para nossa luta. Somos gratos a todos os que contribuíram de alguma forma para a elaboração e a edição deste precioso depoimento histórico.

(1) O autor se refere aqui à telenovela 0 Rei do Gado, apresentada pela Rede Globo durante o ano de 1996, que abordava o tema da reforma agrária e do MST.

Nota do editor: Texto publicado como prefácio ao livro Vozes da marcha pela Terra (org, Andrea Paula dos Santos, Suzana Lopes Salgado Ribeiro, José Carlos Sebe Bom Meihy. São Paulo: Edições Loyola, 1998). O livro, produzido no Departamento de História da Universidade de São Paulo, reúne os relatos de vida de 16 pessoas que participaram da Grande Marcha Nacional pela Reforma Agrária, Emprego e Justiça, cujas colunas, saindo de todos os cantos do país, chegaram a Brasília em 17 de abril de 1997. Reprodução autorizada pelo autor.

João Pedro Stedile é a economista formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com pós-graduação na UNAM (México).Assessorou a Comissão Pastoral da Terra. Um dos fundadores do MST e atual membro da Direção Nacional. É autor de Questão agrária no Brasil. (São Paulo: Atual Editora, 1997), A luta pela terra no Brasil, juntamente com Frei Sérgio (São Paulo: Scritta, 1993), A reforma agrária e a luta do MST (Petrópolis:Vozes, 1997), Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil, juntamente com Bernardo Mançano Fernandes (São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999).

Data:

novembro de 2002

Recurso ID:

THEREARE343

		À Universidade da página bem-vinda de Nottingham

Vozes Sem Terra, site hospedado pela
School of Languages, Linguistics and Film
Queen Mary University Of London, Grã-Bretanha

Coordenadora do Projeto e Organizadora do Arquivo: Else R P Vieira
Produtor do Web site: John Walsh
Arquivo criado em janeiro de 2003
Última atualização: 07 / 05 / 2016

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